*Por Fábio Lopes
Com a aproximação do início das aulas, logo a universidade voltará a ter movimento. Quando você estiver em seu gabinete sem aparelho de ar-condicionado ou em uma sala de aula em frangalhos, lembre-se de que, em 2024, a Reitoria preferiu gastar alguns milhões de reais, reformando a Igrejinha, dando um trato no Templo Ecumênico, financiando mil viagens duvidosas da turma do andar de cima e, last but not least, impermeabilizando a cobertura do prédio em que o reitor e seu staff trabalham.
E sabe o banheiro que você novamente frequentará? Aposto que vai encontrá-lo exatamente como ele estava antes das férias, com válvulas quebradas, vazamentos e cabines interditadas. Pois é. Será que os 45 mil reais pagos a título de cachê à banda Dazaranha não seriam suficientes para consertá-lo? Ou que tal se os nossos mandarins tivessem reparado essas descargas, canos e torneiras em lugar de torrar dinheiro bancando palestras de influencers que, depois disso, já com o pix na conta bancária, acharam por bem difamar a UFSC em podcasts por aí?
O reitor vive dizendo que falta dinheiro. Não está propriamente mentindo, mas contando da missa só a metade. Os gargalos de gestão que ele prometeu resolver seguem incólumes e já nem mais são citados em suas manifestações públicas. O Magnífico tampouco se propõe a discutir as prioridades de seu mandato. Graças ao prestígio que acumulou junto a TAEs, ao movimento estudantil e ao grupo de professores que cooptou durante a última greve docente, dá de barato que já tem votos suficientes para se reeleger. Os descontentes que se lixem. Ou que comam brioches, como queiram.
Ao falar aqui em prioridades, estou, é claro, me referindo a coisas como os dispêndios que arrolei acima. Não faz nenhum sentido que, depois da invenção do Google Meet, pessoas se desloquem para reuniões presenciais em Quixeramobim ou na Cidade do México, tanto mais em períodos de crise orçamentária e no curso de uma gestão que implantou o teletrabalho literalmente a torto e a direito. Tampouco faz sentido reformar o teto do próprio escritório enquanto a água escorre pelas paredes de salas destinadas ao ensino ou à pesquisa.
Tudo isso revela uma incompreensão completa do que sejam os valores que organizam uma universidade. Mas, em matéria de prioridades, há algo ainda mais grave em jogo, e é sobre isso que eu gostaria de falar. Senão, vejamos.
Entre as coisas que o leitor encontrará intactas na universidade quando o recesso terminar, está a enorme placa que recebe as pessoas na entrada do Campus João David Ferreira Lima. Por causa de sua posição estratégica, ela é o cartão de visitas da instituição, o seu símbolo maior, a expressão daquilo que seus gestores julgam importar acima de tudo.
Qualquer um esperaria ver ali alguma referência à ciência, à tecnologia, ao conhecimento ou ao ensino. Mas o que se apresenta é coisa muito diferente disso. “UFSC antinazista e antirracista”, lê-se em letras garrafais.
A placa surgiu naquele local especialmente depois que dois ou três estudantes ligados a uma incipiente célula nazista foi desbaratada no estado. Pouco importa se, ao serem descobertos, eles revelaram ser só um punhado de adolescentes tardios sem emprego ou namorada. Pouco importa que seus sonhos supremacistas agora borrem as fraldas vendo o sol nascer quadrado. A comoção com o caso ainda reverbera na universidade como se a SS estivesse instalada entre nós. “Menas”. Bem “menas”.
A UFSC nasceu nos anos 1960, no auge de um projeto nacional de desenvolvimento que se iniciara com a Revolução de 1930 e, de um modo ou de outro, se sustentou até a década de 1980. Era uma época em que o país crescia a taxas chinesas, que giravam em torno de 6% ao ano. Em tal ambiente, instituições como a nossa eram um peixe na água. A UFSC funcionava como centro formador de elites intelectuais e técnicas capazes de dirigir e implementar o braço catarinense do projeto nacional de desenvolvimento.
O que houve depois que esse impressionante surto de crescimento micou? Desde então, o Brasil avança em média 2% ao ano, o que significa, na prática, estagnação, uma vez que a população cresce mais de 1% a cada giro da Terra em torno do Sol.
A universidade tinha alguma lenha para queimar e foi gastando esse estoque ao longo das últimas décadas, na esperança de que o país reencontrasse o caminho para o sucesso. Houve ocasiões em que o Brasil até parecia ter entrado nos eixos novamente – como no segundo mandato de Lula –, mas se tratava de meros voos de galinha.
Passados quarenta anos desde que começamos a patinar, o país está cada vez mais acomodado a um papel menor na geopolítica e geoeconomia. Estamos nos habituando à condição de meros exportadores de commodities. E, por óbvio, tais circunstâncias não reservam lugar para um sistema universitário do tamanho do que temos atualmente. Para que formar quadros especializados se o mercado precisa de um número reduzido deles? Para que investir em ciência e tecnologia se as indústrias e empresas de ponta só existem residualmente no Brasil?
Vocês já percebem aonde quero chegar? As universidades estão perdendo espaço no que os marxistas chamam de modo de produção. Estão perdendo a legitimidade. Não à toa, a própria manutenção delas é hoje questionada com intensidade crescente pela população.
A saída preferencialmente trilhada pelas instituições para essa crise de legitimidade – e a UFSC tem pretendido estar na vanguarda de tal processo – é a aposta na inclusão. A ideia, salvo melhor juízo, parece ser justificar a existência das universidades no projeto de dar a populações estigmatizadas e discriminadas acesso ao ensino superior público.
O problema é que essa é uma estratégia de pouco fôlego. Muitos são os motivos para que eu diga isso.
Primeiro, o número de pessoas atingidas pelo dispositivo de inclusão é estatisticamente irrelevante se comparado com o conjunto da população. Não dá para esperar que quem fica de fora desse pacote se sinta compensado por quem é trazido para dentro. O conceito de representação funciona só nos manuais sobre o tema, não na vida real.
Segundo, o acesso ao ensino superior está acontecendo de muitas outras maneiras, a começar pela oferta de cursos privados EaD. Enquanto a UFSC imagina estar fazendo inclusão, instituições particulares oferecem graduações a distância a 100 reais por mês ou menos. É mais barato do que morar em Floripa, mesmo com RU a preço de banana ou moradia estudantil garantida.
Dir-se-ia que a esses cursos EaD falta qualidade. De acordo. Mas vale a pergunta: a qualidade tem sido valorizada na UFSC? Ou, para não recorrer a termos tão drásticos, a qualidade tem sido valorizada a ponto de criar uma verdadeira motivação para que pessoas nos procurem em quantidades expressivas e queiram permanecer aqui?
Não creio. Claro: a UFSC é certamente muito melhor do que os botequins de ensino que grassam por aí. Mas o ponto não é esse. A questão é que o nosso imenso potencial é grotescamente subaproveitado, e isso porque, para começar, a Reitoria está completamente desinteressada da busca pela excelência e, mesmo que estivesse inclinada a atacar esse tema, não teria a menor condição de fazê-lo. Explico.
O reitor, embora tenha sido eleito pela esquerda e se escore nela para pleitear a reeleição, não é um homem de esquerda. Aliás, suspeito de que não seja nem de esquerda, nem de direita, nem de centro. Ele simplesmente não tem projeto algum. Sonhou a vida inteira em ocupar o cargo, mas se esqueceu de perguntar por que e em nome de que ideias desejava tanto isso. Em geral, as pessoas chegam a altos postos porque sua formação as vai levando a isso. Mas, no caso do reitor, foi o contrário: ele se formou porque queria ser reitor. Não é uma pessoa autêntica e organicamente tocada pela paixão pela docência e a pesquisa. A rigor, fez um uso puramente instrumental da carreira acadêmica para chegar aonde queria.
Sem projeto, ele fica à mercê das circunstâncias. E, no seu caso, essas circunstâncias o aproximaram da atual vice-reitora. Se o reitor não tinha nada para apresentar à UFSC, a ela não faltava um norte: a inclusão. Na falta de algo melhor para colocar no lugar e percebendo o apelo que o tópico tinha no momento em que se candidatou pela quarta vez ao cargo, o reitor abraçou a causa como se fosse um José do Patrocínio, um Castro Alves.
Estamos assim submetidos, por um lado, a um reitor à caça de um discurso que pudesse ocupar o vazio de ideias que o caracteriza e, por outro, a uma vice-reitora aparentemente incapaz de dar atenção a qualquer coisa que não coloque o tema da inclusão acima de tudo.
Está mais do que na hora de virar esse disco.
Vamos encarar os fatos. O sistema universitário tal como o conhecemos é um paquiderme. Não há a menor chance de ele continuar a existir nos termos atuais, que dirá se expandir. Universidades não existem no vácuo. Elas até podem lidar com abstrações, mas o mundo em que estão imersas não é abstrato. É concreto. E o que essa concretude hoje indica é que haverá uma inevitável retração do sistema e que, portanto, não haverá lugar para todo mundo, como já foi possível imaginar um dia.
Uma competição pesada entre as universidades existentes está se anunciando. E mesmo dentro das universidades que sobreviverão a essa disputa, um processo de depuração vai acontecer. Cursos inteiros terão que mudar seu perfil ou se extinguirão. Formas e ritmos de trabalho precisão se modificar. Desafios não pequenos terão que ser vencidos até que estejamos em terra firme novamente e possamos respirar um pouco mais tranquilamente.
Uma era de mudanças e de enormes exigências mal começou a se configurar. Estamos preparados para ela? De jeito nenhum.
Mas a UFSC tem chance de se salvar, dado o capital simbólico e material que historicamente acumulou. A primeira providência é colocar a busca da excelência como o seu valor fundamental. Isso não significa descartar a inclusão, mas compreender que não estamos em campeonato moral mas em um jogo muito mais complexo, no qual nada menos do que a nossa existência está em risco.
De que adianta incluir – aumentar o tamanho da porta de entrada – se o caminho até a formatura das pessoas está cheio de alçapões em que elas muitas vezes recaem e, por conseguinte, se veem limadas do processo? Do que adianta essa porta de entrada ser grande se, como os dados de evasão, demonstram, os jovens estão sendo sugados para fora da instituição em número ainda maior? Do que adianta oferecer mais vagas se, em uma quantidade alarmante de casos, ninguém as quer preencher? Do que adianta criar cotas e mecanismos de permanência se não houver razões muito fortes – academicamente forte, quero dizer – para que cotistas e não cotistas fiquem até o fim em seus cursos?
Não vejo razão mais sólida para alguém aguentar a barra de estudar quatro ou cinco anos em uma cidade cara e complicada do que a excelência da formação oferecida. E embora sejamos muito melhores do que a média, a distância que mantemos em relação aos caminhos concorrentes ainda está longe de ser larga o bastante para sustentar o desejo dos alunos de permanecer na Casa a qualquer preço. Temos que ser imbatíveis. Temos que voltar a amar uma palavrinha que virou tabu: mérito. Claro que se pode relativizar o seu sentido, mas não descartá-lo.
E como se faz da busca da excelência o valor maior da instituição? Em primeiro lugar, colocando na Reitoria alguém que seja reconhecido por sua potência intelectual e que seja capaz de inspirar as pessoas. Em segundo lugar, colocando na vice-reitoria alguém que não seja adversária da ideia de mérito.
Nossos líderes – a par de terem que ser eles mesmos cultores da excelência – devem dar um passo além de simplesmente oferecerem-se como exemplos à comunidade universitária. Eles precisam ter a coragem necessária para, implantando medidas práticas, premiar e promover a excelência. Em meu último artigo, apresentei uma dezena de sugestões nesse sentido. Repito-as aqui:
- Endurecimento das regras para a saída para pós-doutorado. Exemplos de mudanças possíveis: só poderíamos ir para uma das 200 melhores universidades do mundo, assim como seria obrigatório desenvolver durante a licença um certo número de produtos concretos a serem rigidamente definidos por normativas internas (artigos internacionais, acordos de cooperação, etc.).
- Endurecimento das regras de progressão funcional, hoje quase inacreditavelmente frouxas.
- Criação de um escritório de projetos que prospectasse editais e linhas de financiamento, além de fornecer modelos de apresentação de propostas e auxiliar na formatação delas.
- Proibição de uso de celulares e outros gadgets em sala de aula, salvo em casos em que esses equipamentos são material pedagógico indispensável às disciplinas.
- Estabelecimento de prazos para que cursos com baixa procura e/ou alta evasão apresentem propostas de melhoria dos seus índices.
- Instalação de secretarias integradas chefiadas por TAEs, com vistas à criação de ambientes mais eficientes, pró-ativos, propensos à socialização dos trabalhadores e aptos a garantir-lhes o direito a férias, licenças ou teletrabalho sem que o setor colapse.
- Vinculação obrigatória do teletrabalho à integração das secretarias e demais setores.
- Obrigatoriedade de que os chefes de departamento e coordenadores de cursos e programas de pós cumpram todas as horas de suas portarias presencialmente, nos seus locais de trabalho.
- Ponto eletrônico para professores nos horários de aula.
*Fábio Lopes é diretor do CCE/UFSC
Artigo recebido às 16h33 do dia 28 de janeiro de 2025 e publicado às 8h43 do dia 30 de janeiro de 2025