Como garantir a equidade racial no Corpo Docente da UFSC?

Por Lindberg Nascimento Júnior*

Desde a publicação do Diagnóstico de Racismo Institucional da UFSC (Chaves et al., 2024) e da proposta de minuta de alteração da Resolução Normativa nº 34/CUn/2013, que regula os concursos públicos na universidade, um sentimento de insegurança e dúvida quanto à exequibilidade dos prazos e das metas para o alcance da equidade racial tomou parte de nossa comunidade. Além disso, surgiram questionamentos sobre a necessidade de embasar essa importante e histórica decisão em dados concretos, e não apenas na tradição institucional e vontade política.

Inicialmente, é importante destacar que segundo o Projeto de Lei 1958/21, que 30% é o patamar da equidade racial no corpo docente das universidades federais, efetivada pela composição de pessoas autodeclaradas negras, indígenas e quilombolas. Na prática, a equidade racial é alcançada quanto a proporcionalidade racial for atingida. Também é fundamental compreender que esse projeto altera a Lei nº 12.990/2014, que até então previa que a equidade racial fosse de 20%, garantida pela reserva de vagas nos editais. 

Na UFSC, a proporção atual de docentes negros equivale a apenas 9,1% (235) do total de 2.359 docentes (Chaves et al., 2024). Para atingir o patamar de equidade racial de 30%, a UFSC precisa ter um total de 778 docentes negros, o que significa a necessidade de criar e garantir 543 novas vagas para esse grupo. Esse é um dos desafios que a instituição precisa enfrentar, especialmente porque a Resolução Normativa no 175/2022/CUn já consolidou o compromisso com ações afirmativas e a superação do racismo institucional, e abriu a possibilidade de efetivar a equidade racial na nossa comunidade.

Diante desse cenário, sabemos que a decisão sobre como estruturar a reserva de vagas não pode ser apenas técnica ou jurídica; trata-se, também, de uma escolha política, um posicionamento combativo e que deve paralisar o racismo institucional na UFSC. De fato, avaliar as implicações, os desafios e as responsabilidades associadas a essa decisão é fundamental para garantir que a universidade adote medidas eficazes, consistentes e juridicamente seguras, com seus ônus e bônus.

Com o objetivo de subsidiar esse debate, responder o questionamento de como garantir a equidade racial no Corpo Docente da UFSC, e diminuir sentimento de insegurança e dúvida quanto à minuta, apresentamos aqui os diferentes cenários testados e a síntese dos modelos analisados pela comissão responsável pelo diagnóstico (Chaves et al., 2024). Além disso, destacamos o cenário que melhor se alinhou ao planejamento estratégico da instituição para alcançar a equidade racial no corpo docente.

Modelos e cenários testados

Para atingir a meta de 30% de equidade racial na UFSC e superar o patamar de 9,1% da proporcionalidade atual, em um prazo razoável, é imprescindível que primordialmente as vagas reservadas não retornem à ampla concorrência e sejam efetivamente ocupadas por pessoas autodeclaradas negras. Esse foi um dos principais mecanismos de racismo praticado pela e na intuição quando se refere a contratação de docentes pertencentes ao grupo racial negro e as vagas reservadas (Lei nº 12.990/2014), e que foi identificada em Chaves et al. (2024). 

A título de exemplificação, verificamos que o desvio das vagas reservadas para a ampla concorrência enfraquece a política de ações afirmativas como um todo, e mantém a sub-representação da população negra no corpo docente da universidade. Trata-se de um padrão, a maneira como o racismo institucional funciona e é praticado na universidade, por isso, a necessidade de reforçar políticas eficazes para assegurar que as vagas destinadas a docentes negros sejam de fato ocupadas. De outro modo, o mecanismo favorece que brechas administrativas comprometam o compromisso da universidade com a equidade racial, mantendo a disparidade racial entre docentes em níveis muito altos e impedindo as transformações que a Lei nº 12.990/2014 sugere  (Schucman; Nascimento Júnior, 202?, no prelo).

Esse argumento é reiterado quando assumimos que nos últimos 10 anos (período de vigência da lei de cotas nos concursos públicos da UFSC), foram preenchidas 1142 vagas na UFSC, destas, se respeitada a previsão legal de 20%, 209,4 vagas deveriam ser ocupadas por docentes negros, mas efetivamente, foram somente 19, ou seja, menos de duas pessoas negras por ano. Na prática, se nenhuma mudança for implementada, é esse cenário que será mantido, e a equidade racial na universidade só será atingida no ano de 2173. Trata-se de um prazo inaceitável, se pretendemos concretizar o princípio fundamental de justiça racial e social, declarado na missão da universidade e reforçada pela Resolução Normativa no 175/2022/CUn. 

Por outro lado, caso a política de reservas seja aplicada corretamente (as vagas reservadas não retornam à ampla concorrência) e sem desvios (as vagas reservadas sejam efetivamente ocupadas por pessoas negras), a instituição pode adotar diferentes cenários de crescimento do número de ingresso de pessoas negras, com base nos seguintes modelos apresentados na Tabela 1, que consideram a previsão de 30% de reserva de vagas. 

Tabela 1 – Modelos e cenários para alcance da equidade racial na UFSC

AnoEstimativa anual de vagasModelo 1 – ProporcionalidadeModelo 2 – Regressão linear
Cenário 1                      (79% das vagas nos editais)Cenário 2                     (30% das vagas nos editais)Cenário 3                      (79% das vagas nos editais)Cenário 4                     (30% das vagas nos editais)
202510079,030,040,710,3
202610079,030,072,418,3
202710079,030,054,624,1
202810079,030,036,827,7
202910079,030,019,129,0
203010079,030,01,328,0
203110079,030,0 24,8
2032100 30,0 19,3
2033100 30,0 11,6
2034100 30,0 1,6
2035100 30,0  
2036100 30,0  
2037100 30,0  
2038100 30,0  
2039100 30,0  
2040100 30,0  
2041100 30,0  
2042100 30,0  
2043100 30,0  
Total1900553,0570,0224,9194,6

Modelo 1 – Proporcionalidade

Esse modelo prevê que, a cada ano, um percentual das novas vagas deve ser destinado a docentes negros. Dois cenários foram projetados:

  • Cenário 1: 79% das vagas nos editais seriam reservadas para docentes negros, já que 20% das vagas são reservadas para pessoas PCD e 1% para pessoas trans. Com essa política, a UFSC atingiria a meta da equidade racial entre 2030 e 2031, acumulando um total de 553 professores negros até esse período. Essa trajetória apresenta crescimento rápido e constante, garantindo a equidade racial em um prazo viável. Denominamos esse cenário de Estratégia Urgente de Combate  (Chaves et al., 2024).
  • Cenário 2: 30% das vagas nos editais seriam destinadas a docentes negros. Nesse caso, a equidade racial seria atingida entre 2042 e 2043, totalizando 570 docentes negros nesse período. Esse cenário, apesar de mais lento, mantém uma distribuição contínua das vagas e assegura um fluxo constante de ingresso de docentes negros. Denominamos esse cenário de Estratégia Gradativa de Combate  (Chaves et al., 2024).

Modelo 2 – Regressão Linear

Aplicamos esse modelo baseando-se na tendência de crescimento do número de vagas nos últimos 10 anos, e testando a equação de regressão linear y = -11,261x + 22.855. A projeção indica um crescimento inicial mais acelerado, com um pico de vagas entre 2028 e 2030 (mesmo período de alcance da equidade racial de acordo com o Cenário 1), seguido por uma redução paulatina no ritmo de expansão. Esse modelo resultou na construção dos seguintes cenários:

  • Cenário 3: 79% das vagas reservadas nos editais seguem a regressão linear, garantindo um avanço expressivo até 2030, mas com uma desaceleração posterior. Inicialmente, em 2025, seriam reservadas 40,7 vagas para docentes negros, com um pico de oferta entre 2028 e 2030, seguidos por uma forte redução nos anos seguintes. Ao longo do período analisado, o modelo acumularia positivamente 224,9 vagas até 2031, e começaria a apresentar crescimento negativo.
  • Cenário 4: 30% das vagas reservadas acompanham a regressão linear, resultando em um crescimento mais lento e prolongado até 2043. A previsão é de um pico de 29 vagas reservadas em 2029, e o valor acumulado no período é de 194,6, significativamente menores do que os necessários para atingir a equidade racial.

Em nossa avaliação, embora o Modelo 2 possa apresentar um volume maior de vagas em determinados períodos, sofre com perdas muito significativas a longo prazo, e compromete o alcance da meta estabelecida pela instituição. Por isso, esse modelo não garantiria o alcance da meta de 30% de docentes negros na UFSC dentro de um prazo aceitável, sendo inviável para uma política de ação afirmativa dessa natureza. 

Em nossa análise, o Modelo 1 garante um planejamento consistente e robusto, permitindo um ingresso contínuo e sem grandes flutuações de candidatos ao longo do ano. Portanto, a adoção desse modelo se apresentava como a alternativa mais eficaz para equidade racial na UFSC, pois proporciona estabilidade e previsibilidade na ocupação das vagas, garantindo um impacto durável na constituição racial do corpo docente (Chaves et al., 2024).

Diante do exposto, indicamos que a instituição, deveria optar por um dos dois cenários oriundos desse modelo (1 ou 2), ou da combinação deles. Por isso, a comissão que elaborou a minuta de alteração da Resolução Normativa nº 34/CUn/2013, com a proposta de que os dois cenários sejam apreciados pela comunidade, oferecendo mais subsídios para a decisão.

À guisa de conclusão, mas sem concluir…

Entendemos que é importante adotar um modelo de reserva de vagas que garanta que a política de ação afirmativa na UFSC cumpra seu papel de transformar a composição racial do corpo docente da instituição. E também que a urgência da implementação de medidas afirmativas eficazes também não pode ser subestimada pela tradição, ou por sentimentos de dúvidas e insegurança.

Por isso, independentemente do cenário apresentado na minuta, a decisão da UFSC deve considerar não apenas a viabilidade técnica e jurídica, mas sobretudo, o compromisso ético e institucional com a reparação histórica e a justiça racial e social. Implementar uma política eficaz de reserva de vagas para docentes negros é um passo essencial para consolidar a equidade na universidade e enfrentar o racismo praticado e presente em nossa instituição. Essa decisão é política, e a UFSC está pronta e preparada para ela.

Então, como garantir a equidade racial no Corpo Docente da UFSC? A resposta sem dúvida é: se nossa comunidade decidir pela manutenção do modelo de contratação atualmente praticado, em que as vagas reservadas podem retornar à concorrência universal, a equidade racial do corpo docente da UFSC só será alcançada em 2173. Atingir a meta de 30% de docentes negros em um prazo viável exige que as vagas reservadas sejam efetivamente ocupadas por candidatos autodeclarados negros. Manter o retorno automático dessas vagas à ampla concorrência, como ocorre hoje, significa: 

  • Perpetuar os principais mecanismos de racismo institucional nos concursos públicos; 
  • Inviabilizar a aplicação do princípio da equidade racial na universidade; e,
  • Adiar quase que indefinidamente a possibilidade de reparação de uma desigualdade histórica que estrutura a universidade brasileira, em particular, a UFSC. 

Por isso, insistimos, que se essa lógica não for rompida, a equidade racial do nosso corpo docente só será alcançada em 2173 — e isso no cenário mais otimista.

Decidir pela manutenção do modelo atual também é uma grande contradição ao que definimos como missão e compromisso social, sobretudo, após apresentação dos indicadores de disparidade racial. Por isso, devemos ter consciência de que ela é também uma decisão. De outro modo, também temos outras duas alternativas para responder positivamente essa questão. 

Apresentamos que a escolha de um dos modelos é também uma decisão coletiva. Ela assegura que essa escolha não é imparcial ou neutra, mas é intencional, objetiva é elaborada a partir de dados e informações concretas. Esse caráter garante o rigor essencial para garantir que a decisão consciente e segura, e não reduzida por insegurança, dúvida, fantasias e ideologias. A proposta também não se qualifica como resposta a grupos identitários, pois se trata de políticas de reparação e justiça social, alinhadas aos princípios democráticos e ao compromisso institucional de enfrentamento do racismo no Brasil. Trata-se de fazer cumprir a função social da universidade pública brasileira na prática.

A implementação ou não das mudanças indicadas e alcançar a equidade racial no corpo docente no prazo ideal, com certeza consiste em um marco histórico que carrega tanto ônus quanto bônus hoje e no futuro. O ônus, sem dúvida, reside na complexidade do debate jurídico, pois o desafio de superar o racismo institucional passa pelas resistências internas e externas, que além de serem históricas e se cristalizam a tradição (manutenção da normalidade da instituição), precisam ser submetidas ao crivo dos princípios e avaliadas para manter a coerência entre nossas decisões e a missão, os objetivos e a função social da universidade. Para responder esse desafio, devemos apostar na nossa competência técnica, acadêmica e intelectual, no significado de uma decisão coletiva e na transformação que queremos promover.

Por outro lado, o bônus é inegavelmente muito vantajoso: entrar para a história como uma instituição comprometida com a transformação social, assumindo um papel ativo na reparação de desigualdades raciais diante do cenário atual! É um feito incrível! E o futuro garantirá o relato honesto e louvável de nossos impactos. 

No mais, o que está em jogo não é apenas a composição do corpo docente da nossa comunidade, mas do legado da UFSC e da nossa geração em promover justiça, em garantir um projeto de universidade diversa, e em dar continuidade a democratização da educação superior no Brasil.

Referências

CHAVES, Leslie Sedrez; SCHUCMAN, Lia Vainer; NASCIMENTO Jr, Lindberg; SOUZA, Marco Antonio de Azevedo Duarte. Relatório de monitoramento e avaliação da política de enfrentamento ao racismo: Diagnóstico I – Perfil da comunidade, indicadores de racismo institucional e cenários de combate. Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Equidade. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2024. Disponível em: https://relacoesetnicoraciaiseequidade.paginas.ufsc.br/files/2024/07/Diagnostico_Racismo_Institucional_UFSC.pdf Acesso em: 21 out. 2024.

UFSC. Resolução Normativa Nº 175/2022/Cun, de 29 de Novembro de 2022. Dispõe sobre a Política de Enfrentamento ao Racismo Institucional em suas diferentes formas de manifestação no âmbito da Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: https://conselhouniversitario.paginas.ufsc.br/files/2022/12/RN_1752022CUn_Pol%C3%ADtica-de-enfrentamento-ao-racismo.pdf. Acesso: 01 fev. 2025

UFSC. Resolução Normativa Nº 34/CUn/2013, de 17 de Setembro de 2013. Estabelece as normas para o ingresso na carreira do magistério superior da Universidade Federal de Santa Catarina. Conselho Universitário. Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/105688/Resolu%C3%A7aoNormativa_34_Ingresso%20Magist%C3%A9rio%20Superior.pdf?sequence=1. Acesso: 01 fev. 2025.

BRASIL. Lei Nº 12.990, de 9 de Junho de 2014. Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12990.htm . Acesso: 01 fev. 2025.

SCHUCMAN, Lia Vainer; NASCIMENTO Jr, Lindberg. Os mecanismos de racismo institucional das universidades públicas brasileiras.  202?, no prelo.

*Lindberg Nascimento Júnior é professor do Departamento de Geociências (CFH/UFSC)

Artigo recebido às 12h40 do dia 20 de fevereiro de 2025 e publicado às 8h28 do dia 21 de fevereiro de 2025