Por Armando Lisboa*
“Deem-me algumas linhas escritas pelo mais honrado dos homens e encontrarei nelas um argumento para enforcá-lo” (Richelieu)
Golfo do México, Hino de Santa Catarina… Na UFSC o barco afunda, mas digladiam-se sobre qual nome submergirá … De modo geral, este tipo de agenda destoa da amplitude requerida para enfrentar os graves desafios dos tempos atuais, dissolvendo o espaço comum que torna possível a vida democrática.
Todavia, apesar da delicada conjuntura em que está exposto, o caso da UFSC se alavanca num forte tempero: a narrativa de aqui ter ocorrido barbaridades históricas. A questão é, portanto, substantiva, não cabendo “passar pano” na mesma. É relevante buscar responsabilizar os que arbitrariedades cometeram. Este é o trabalho das Comissões Verdade.
Na UFSC, com a constituição da Comissão Memória e Verdade (final de 2013), temos dois relatórios. O primeiro (e principal), o da própria CMV/UFSC (centenas de páginas) demonstra que, se a UFSC não passou incólume pelo Regime Militar, tampouco encontrou aqui aberrações – expurgos – ocorridas em outras universidades. Este relatório foi objeto de “audiência pública” e aprovado pelo CUn em 2018. Conclui com 12 “recomendações finais onde, genericamente, se sinaliza uma “reavaliação das homenagens dadas anteriormente”.
O segundo relatório é o da “Comissão para encaminhamento das Recomendações Finais”, constituída pelo CUn no início de 2023. Mesmo finalizado há cerca de um ano, apenas no atual semestre letivo é que teve publicidade. Nele surge a polêmica proposta de alteração do nome do campus da Reitoria, a qual não chegou a ser apreciada em audiência pública. Sustenta esta proposta um Anexo sintetizando as evidências incriminatórias ao João David Ferreira Lima encontradas pela CMV (a primeira Comissão).
A primeira página do Anexo relata a memória dos trabalhos da CMV. Após, analisa as informações da “Comissão de Inquérito do AI-1, de 1964”. Em decorrência do Ato Institucional 1, comissões de inquérito foram abertas nos órgãos públicos para, através de “investigação sumária”, embasar punições e demissões dos estigmatizados como “subversivos”. Na UFSC, como é informado, ela foi constituída quando a reitoria era exercida pelo prof. Luiz Osvaldo D’Acâmpora.
A CMV revela que a Comissão de Inquérito (CI) indiciou estudantes (Francisco Mastella, Rogério Queiroz, Eduardo Luiz Mussi e Ivo Eckert) e funcionários (Emanoel Campos, João Nilo Linhares, Murilo Gonzaga Martins e Carlos Alberto Silveira Lenzi). Todavia, o relacionamento deles com a UFSC seguiu sem punições ou graves prejuízos. Como isto foi possível?
Como prova da “ativa de colaboração” de Ferreira Lima com a repressão, a segunda Comissão anexa (“Documento 3”) dois ofícios. O 77/64, da CI, onde o Reitor é cobrado por ter declarado (em ofício anterior, 863/64, de 15 de maio de 1964) ser “público e notório que os órgãos estudantis FEUSC, UCE e CAXIF (…) mantinham íntima ligação com a UNE”. O magnífico é solicitado a “informar os nomes dos referidos presidentes” daquelas entidades. Responde Ferreira Lima com o Ofício 875/64 (de 20 de maio), nominando os presidentes daquelas entidades: Francisco Mastella (FEUSC, atual DCE), Rogério Duarte de Queiroz (UCE), e Eduardo Luiz Mussi (CAXIF).
Ora, sendo a UFSC então uma modesta e pequena universidade, situada numa provinciana e também pequena capital, estes dirigentes eram bem conhecidos – um deles já tinha sido aprisionado nos instantes iniciais do golpe militar. Em meados de maio não há aqui nenhuma novidade, especialmente para os órgãos repressivos …
Ao longo deste primeiro tópico expõe-se longamente informações advindas da obra “As Universidades e o Regime Militar”. Esta obra aborda a “Operação Limpeza” (expurgo dos adversários) que transcorreu em diversas universidades logo após o Golpe, mas não arrola a UFSC entre elas …
Não arrola porque, como é sabido, barbaridades perpetradas pelos dirigentes da UFSC inexistiram naquele período. Ou seja, as provas encontradas contra Ferreira Lima pela CMV são extremamente frágeis, o que se escancara nos demais tópicos do Anexo, especialmente no segundo (“Alguns casos de perseguições”).
Ele contém os principais casos que maculariam Ferreira Lima: os dos professores Gallotti, Stodieck e Mamigonian. Ora, todos os três permaneceram no exercício das suas funções docentes, sendo que Stodieck e Mamigonian nada sofreram concretamente …
Já Gallotti, o mais emblemático cidadão preso em Santa Catarina após o golpe, encarna o episódio da maior gravidade e repercussão do período ditatorial envolvendo a UFSC. Ele foi alvo daquela CI, na qual Ferreira Lima não está envolvido diretamente. Ao contrário, em ofício para a CI, João David diz, no que tange a Gallotti, que “nada nos consta sobre seu procedimento com respeito a atos subversivos” … Apesar da CI recomendar ao Reitor a exoneração do docente, isto não ocorreu.
Os dois últimos tópicos do Anexo trazem situações que demonstrariam a “cumplicidade” de Ferreira Lima com o Regime Militar. Neles inclusive se incriminaliza o primeiro reitor simplesmente por ter sido condecorado pela Marinha em 1965. Tudo indica que João David usou dos seus relacionamentos exatamente para evitar que aberrações dilacerassem a UFSC, mas a Comissão, diante da sua convivência com “prostitutas e publicanos”, optou por crucificá-lo.
Na linha da metáfora acima, abro um pequeno parêntese: se Bergoglio tivesse morrido “cardeal”, além de ter ficado restrito apenas aos argentinos, certamente a sombra que a esquerda local nele afixou – colaborador da Ditadura, inclusive entregando sacerdotes nas assassinas mãos da mesma – teria crescido e maculado sua honra. Mas, morreu Franciscus …
No que resultou todos os “ofícios” e jogo de bastidores revelados pela CMV/UFSC? Onde estão as violências e violações com peso suficiente para uma revisão histórica como a proposta? Qual foi o resultado do tal “empenho persecutório”?
Se o empenho persecutório atribuído a Ferreira Lima pela CMV fosse real, o primeiro Reitor teria utilizado o prestígio e força que desfrutava para perpetrar uma “limpeza ideológica/política” sem precedentes na UFSC. Mas ela não ocorreu! Os mais afoitos – que inclusive depredaram a Livraria Anita Garibaldi e incendiaram seus livros na Praça XV, centro de Florianópolis, no início de abril de 1964 – queriam algumas cabeças. Todavia, cabeças de fato não rolaram na UFSC. Ao contrário do que arremata a CMV, o mais provável é que a mão de João David se fez presente e, resistindo às recomendações da CI, evitou o pior. Por isto, nenhum saldo mais drástico, dentro da universidade, ocorreu naqueles duros tempos.
A segunda Comissão surge em simultâneo com um processo posto na UFSC pela família do falecido primeiro Reitor, contraditando o peso e a interpretação dos fatos que envolvem o mesmo. Até o presente, após mais de dois anos, esta contestação é completamente desconhecida da comunidade universitária. Apenas na última sexta, nas vésperas do CUn deliberar sobre a retirada das homenagens, a UFSC enfim noticiou e apresentou publicamente a existência da contradita.
Apesar de um fundamentado contraditório estar posto desde que a segunda Comissão foi constituída, esta descarta com facilidade o preciso e esclarecedor estudo da Heloísa Blasi Rodrigues, advogada da família, o que é espantoso para os padrões acadêmicos e democráticos. Ora, se não se quer cometer injustiça com o primeiro reitor da UFSC, é imprescindível abrir o debate público sobre os atos do Ferreira Lima. Até o momento, isto não ocorreu …
Percebendo que suas teses estavam sendo ignoradas dentro da UFSC, Blasi Rodrigues lançou, no final de 2024, “UFSC: em nome da verdade”. Conhecedor do primeiro relatório (com o qual inclusive colaborei na sua fase inicial), li também o livro de Heloísa Blasi. Afianço que nele se demonstra que o revisionismo histórico que se quer buscar possui uma sustentação demasiadamente frágil e de controversa interpretação.
Todavia, não questiono o trabalho hercúleo da CMV/UFSC. A questão gravita se os fatos arrolados têm densidade suficiente para justificar alterar homenagens. A segunda Comissão, para fundamentar o cancelamento do batismo do campus-sede honrando o primeiro Reitor, pinçou do mais de milhar de documentos examinados pela Comissão anterior exatamente os principais que condenariam Ferreira Lima. Nenhum resultou em atos graves ferindo direitos humanos.
Ocultando o esforço de Blasi Rodrigues desde o final de 2022, nas últimas semanas apenas o segundo Relatório – e sua proposta de retirar as homenagens ao Ferreira Lima – começou a ser apresentado à UFSC. O outro lado, porém, permaneceu desconhecido e sequer convidado para expor em público sua tese… Mas isto parece não importar, pois a controversa proposta já está pautada para deliberação no CUn nesta terça-feira.
A pressa aqui, sem o devido debate, agigantará dúvidas e feridas mal resolvidas. Face a controvérsia, a universidade se corroerá ainda mais caso se exima de chamar um amplo debate onde as posições possam ser devidamente expostas.
*Armando Lisboa é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais do Centro Socioeconômico (CNM/CSE) da UFSC e ex-diretor da Apufsc-Sindical (2006-2010)
Artigo recebido às 18h51 do dia 27 de abril de 2025 e publicado às 9h55 do dia 28 de abril de 2025