O caso Ferreira Lima e a democracia

*Por Fábio Lopes

Fita, com olhar sphyngico e fatal…
Fernando Pessoa

Está em discussão no Conselho Universitário a mudança do nome do campus central da UFSC. O pleito se ampara em relatório da Comissão da Verdade e da Memória que indica a colaboração ativa do Prof. João David Ferreira Lima com os órgãos de repressão durante o regime militar.

O tema, compreensivelmente, tem despertado paixões incandescentes. Essa agitação toda, contudo, contrasta com a atitude imperturbável do reitor, que preside os trabalhos com olímpica indiferença, como se a pauta em debate fosse, sei lá, a vida sexual das carpas japonesas.

Na polêmica que culminou com a reprovação do título de professor emérito a Rodolfo Pinto da Luz, já havia sido assim. Enquanto as pessoas se digladiavam na plenária, o Prof. Irineu limitava-se a observar a contenda com indefectível poker face. Nem parecia que o que estava em tela era a reputação de seu principal padrinho político, a quem ele deve tanto na vida.

Nessas horas, eu fico a matutar: o que estará passando pela cabeça do reitor? Que segredos o seu olhar de esfinge esconde?

Temo que nenhum. A hipótese mais provável é que o Prof. Irineu não seja contra nem a favor da mudança do nome do campus, assim como não era contra nem a favor da concessão do título de professor emérito a Rodolfo Pinto da Luz. Ele não perde tempo pensando nesses assuntos comezinhos. O que o mobiliza mesmo é ganhar as eleições. Enquanto as opiniões se dividem e se crispam, o Prof. Irineu conta votos.

Em tempos idos, colecionar votos na UFSC significava aliar-se à direita – e era à direita que estava o Prof. Irineu. Agora que o vento virou para a esquerda, é na esquerda que ele vai buscar eleitores.

E como ele os busca? Adaptando a sua fala ao público? Defendendo posições simpáticas ao cidadão visado? Nem sempre. Na verdade, quase nunca. O que ele prefere fazer é simplesmente ficar em sepulcral silêncio, o que, na prática, tem significado frequentemente deixar que as forças majoritárias sentem a pua, tratorem e intimidem a minoria, imponham a sua vontade sobre a comunidade universitária, exerçam mais ou menos sem freios o seu poder de maioria.

O Prof. Irineu não está interessado no controle da opinião pública ou em dominar ideologicamente o debate. Desconfio que, do poder e da pompa do cargo, interessa-lhe quase que exclusivamente a pompa. O poder mesmo ele cede de bom grado aos outros – ou mais exatamente à maioria.

E é aí que a porca torce o rabo, porque democracia é tudo menos deixar a maioria fazer o que bem entende. Democracia é sobre proteger e aperfeiçoar a institucionalidade, com vistas a preservar a minoria dos arroubos e abusos da maioria. Na esteira da embriaguez que o poder costuma produzir, as maiorias por vezes se esquecem de que um dia pode se tornar minoria e, ato contínuo, precisar das garantias que, eventualmente, quando tinha a faca e o queijo na mão, sacrificaram.

Reitores que contam votos (em vez de disciplinar maiorias) pavimentam o caminho para o arbítrio.

Analisemos, nesse sentido, a questão específica do nome do campus em suas minúcias.

Em atitude correta, o relator nomeado, Prof. Ubirajara Moreno, encaminhou as coisas de modo a primeiro definir uma regra para tratar do conjunto dos colaboradores e perseguidos. Ele partia do pressuposto – igualmente correto – de que a conduta do Prof. Ferreira Lima não constitui um caso à parte, sendo, antes, uma peça em um contexto e em uma cultura autoritária que dominaram a UFSC por décadas. Para tanto, propôs uma mudança no Estatuto da UFSC.

Por sua vez, o Pró-Reitor de Pesquisa argumentou que a abordagem dos envolvidos devesse ser viabilizada por um instrumento mais simples: uma resolução, que exige procedimentos bem menos custosos para ser aprovada. O relator acatou a sugestão.

Eis, no entanto, que certos defensores da retirada do nome do campus passaram a pressionar o relator a dar um passo adiante e encaminhar a medida na seca, sem necessidade resolução. A ideia, claro, era atalhar ainda mais os trâmites. O relator, no entanto, manteve-se firme, recusando-se a quebrar os termos do acordo inicial. Ao que os proponentes da mudança do nome do campus pediram vista ao processo. A matéria será decidida em reunião vindoura.

O que pensa o reitor disso tudo? Não se sabe, já que, como de costume, ele entrou nesse debate mudo e saiu calado. Mas seu silêncio não quer dizer omissão. Ao fechar-se em copas, ele mais uma vez permitiu que o CUn fosse cerceado por grupos organizados na UFSC (tudo bem, ele até colocou a presença de terceiros em votação, mas fez isso depois que essas pessoas já lotavam a sala, de modo que já mandavam no pedaço. A votação virou mera formalidade). De resto, abriu a palavra a pessoas estranhas ao CUn, que, em seus discursos, se sentiram à vontade para querer ensinar aos conselheiros como agir ou mesmo para ameaçá-los. A bagunça foi tamanha que, a certa altura, alguém que não faz parte do Conselho viu-se no direito de dirigir uma questão de ordem à presidência. Seria cômico se o que estivesse na linha de tiro não fossem as regras da vida institucional.

Vaias e gritos emolduravam eventuais manifestações dissonantes. O neto do Prof. Ferreira Lima teve a palavra garantida, mas foi várias vezes interrompido. Cobraram dele – e só dele – que encurtasse a sua defesa, isso depois que, na reunião anterior, os oradores (a favor da mudança do nome, bem entendido) estiveram livres para falar pelo tempo que julgaram adequado (com o reitor em silêncio, por suposto). Houve até quem ridicularizasse o representante da família do Prof. Ferreira Lima por suas dificuldades de leitura, decorrentes de um AVC. É assim que se trata um PCD na UFSC quando ele não reza pela cartilha.

Democracia exige coragem por parte das minorias – e isso, devo dizer, tem faltado em boa medida a nós outros. Cabe acrescentar, entretanto, que é infinitamente mais difícil ser corajoso sob pressão e cercado por gente disposta a te cancelar ao primeiro sinal de dissidência (em tempo: dissidência na UFSC hoje não significa necessariamente discordar de certas conclusões acalentadas pela maioria; para ser considerado herege, basta defendê-las com argumentos não aprovados pelo Comissariado do Povo ou simplesmente propor que se tomem alguns cuidados jurídicos com a implementação das medidas desejadas pela maioria). Minorias precisam daquilo que os americanos chamam de guts, mas também precisam de regras estáveis e um ambiente livre de pressões e atropelos.

Mais uma vez, perde, pois, o Conselho Universitário como espaço de preservação da democracia na universidade. Mas quem ganha com o que está acontecendo?

Dizem que a mudança no nome do campus é fundamental para o processo de lembrar para não repetir. Já fiz um contraponto a esse truísmo em artigo recente. Não vou repisar o tema aqui.

Quem ganha mesmo é o reitor silencioso, que, empoderando certas forças na UFSC (ao preço do enfraquecimento do CUn), coleciona votos. O seu silêncio lhe é ainda mais conveniente quando se tem em conta que, igualmente em silêncio, ele e mais dois outros altos membros da sua gestão acabaram de receber da Câmara Municipal de Florianópolis a Medalha João David Ferreira Lima (no que se juntaram a três outros colaboradores do Prof. Irineu que já haviam sido agraciados na década passada).

Quem ganha também são as forças empoderadas, que espetacularizam a mudança do nome do campus e, assim, se veem ainda mais fortes para fazer avançar suas pautas.

Ganha também, creio eu, a família do Prof. Ferreira Lima e sua advogada, na medida em que a sede de punir o ex-reitor pula etapas juridicamente necessárias e dá à defesa do fundador da UFSC a oportunidade de reverter a decisão na Justiça.

Ganham, por fim, os demais agentes públicos da UFSC que colaboraram com a ditadura, uma vez que provavelmente ninguém, salvo o relator Ubirajara, está interessado em apurar o que fizeram e encaminhar sanções.

Estou exagerando? Ora, este artigo perderá grande parte de seu objeto com uma atitude simples do reitor: expor clara e publicamente o que ele pensa sobre a mudança de nome do campus (seria indispensável que ele também explicasse por que aceitou a Medalha João David Ferreira Lima mesmo sabendo das conclusões da CVM, assim como o que pretende fazer com ela). Fica o desafio – um desafio, aliás, que deveria ser trivial para alguém que está sentado na mais alta cadeira de uma das cinco melhores universidades do país.

Para que não restem dúvidas: no que se refere ao caso João David Ferreira Lima, voto com o relator.

*Fábio Lopes é diretor do CCE/UFSC

Artigo recebido às 11h59 do dia 9 de maio de 2025 e publicado às 12h38 do dia 9 de maio de 2025