A Primeira Via

*Por Fabrício de Souza Neves

Se você trabalha na UFSC e já tentou explicar a alguém que vem de fora como chegar em algum setor, deve ter sentido uma certa dificuldade. Coitados dos entregadores, sempre correndo com pacotes e tentando achar onde fica certo laboratório, em meio a prédios todos parecidos, ruas internas sem placas com nome, edificações sem número e professores impacientes.

No final do texto vamos saber por que esse problema simples e esquecido na vida do campus tem, na verdade, muita relevância. Mas, primeiro, vamos ao tema que tem chamado a atenção da UFSC e da cidade recentemente. O nome do campus da Universidade Federal em Florianópolis (que ironia, podíamos discutir o nome da cidade também).

A espécie humana tende a se dividir em grupos. E gosta de homenagens, mas só a pessoas de seu grupo! Mesmo assim, precisa ter muita homenagem para atender a essa necessidade.

A Avenida que liga o centro da cidade até o bairro do Pantanal, construída por volta do final dos anos 1970 contornando a orla norte, é conhecida por todo mundo daqui como “Beira-Mar Norte”. As pessoas chamam assim à via de trânsito rápido, com pelo menos três pistas em cada sentido, que começa nas cabeceiras das pontes e vai até a sua divisão em três direções (Córrego Grande, Pantanal e Trindade), bem ali onde ficava o restaurante Dona Benta (atual Napoli). É uma avenida só, sem interrupções, mas ela tem quatro nomes! Começa como Av. Osvaldo Rodrigues Cabral, perto das pontes. Em algum ponto indefinido passa a se chamar Av. Jornalista Rubens de Arruda Ramos. Mais um pouco, e se chama Av. Governador Irineu Bornhausen. Já perto da Universidade, é Av. Professor Henrique da Silva Fontes. Só termina mesmo depois da esquina Córrego Grande-Trindade-Pantanal, onde a continuação dessa avenida se chama Deputado Antônio Edu Vieira, e aí sim perde a característica da “Av. Beira-Mar Norte” assumindo o sinuoso trajeto do antigo caminho geral do bairro Pantanal. 

Ninguém se refere a nenhum ponto desse trajeto pelo nome oficial. Se perguntarmos às pessoas da cidade onde fica a Av. Irineu Bornhausen, vai ser bem difícil encontrar alguém que saiba. Todos nós a chamamos, inteira, de “Beira Mar-Norte”, mesmo quando ela já está passando pelo mangue perto da Universidade em vez da praia (afinal, mangue também é beira-mar!).

Um dia, há mais de vinte anos, o Conselho Universitário resolveu denominar o campus da UFSC em Florianópolis de “Campus Prof. João David Ferreira Lima”, em homenagem a seu primeiro reitor, provavelmente em virtude de seu então recente falecimento. Exceto pelos documentos oficiais, quase ninguém se refere ao campus assim. É muito mais natural ainda chamá-lo pelo antigo nome de “campus da Trindade”, referindo-se ao bairro mais próximo. E não ajuda nada ao entregador ter escrito em seu pacote “entregar na UFSC, campus Prof. João David Ferreira Lima, Fpolis”. Isso pode ser em qualquer lugar do Pantanal à Trindade, da Carvoeira ao Itacorubi, passando pelo Córrego Grande.

Desde então, muita gente na UFSC ficou desconfortável com a denominação do campus, por fatos históricos que apenas aos poucos e a custa de muito esforço de investigação se tornam conhecidos. E se há pessoas desconfortáveis com o nome, precisamos mesmo falar sobre isso. É preciso resolver os problemas dos quais geralmente se prefere não falar muito, “escondendo embaixo do tapete”, antes que eles aumentem. Traumas ocultos, ao longo do tempo, geram doenças.

Em 2011, uma Lei Federal criou a chamada “Comissão Nacional da Verdade”, com o objetivo de “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no Artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, que a Constituição Nacional define como de 1946 até 1988. A UFSC criou sua “Comissão de Memória e Verdade (CMV)” em 2014, com finalidade semelhante.

O relatório final da CMV  foi entregue em 2018, tem cerca de 400 páginas e está disponível em https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/universitarias/UFSC.pdf . Precisa ser lido por quem pretende ter opinião sobre o assunto. Aqui, vamos apenas resumir alguns aspectos dele.

O trabalho é bom ao resgatar e expor transcrições de documentos verídicos e depoimentos, e nos trazer uma visão da história que não teve o devido destaque no ensino e na divulgação pública até 1988. Só que é meio passional e exagerado quando descreve Ferreira Lima enquanto reitor. Dá ao leitor a impressão de que o homem só tinha defeitos: parece alguém desqualificado intelectualmente, cheio de inveja para seus pares de Universidade, cuja única intenção no reitorado era obter ganhos financeiros pessoais, algum prestígio social, e se aproveitou do governo opressor da ocasião para estas finalidades.

Compreende-se. O relatório é escrito com a finalidade de dar espaço para pessoas que foram atingidas e obrigadas a se calar por ações do Governo Federal da época, sendo que Ferreira Lima foi, inegavelmente, um de seus apoiadores. Não se pode esperar uma visão imparcial de quem esteve envolvido como vítima. Mas nós, no Conselho Universitário e na comunidade como um todo, precisamos olhar de forma imparcial para questões em que se pretende tomar a decisão mais justa possível.

E é verdade que muita gente que também conheceu Ferreira Lima, à época, não o descreve assim. Parece que a pessoa tinha suas virtudes, e não eram poucas. Se não era mesmo um intelectual de vasta produção acadêmica, sua inteligência era grande em outro perfil (talvez muito mais necessário para a fundação da Universidade): prático, ágil, diligente, articulado, de fato dedicou essas características positivas à causa da criação da Universidade Federal em Santa Catarina – e deu certo. O simples fato de termos uma Universidade Federal por aqui demonstra que ele não corresponde exatamente à imagem tão negativa descrita pelo relatório. O relatório traz muito de disputas pessoais, familiares e políticas da época, não relacionadas a questões de direitos humanos. Isso incomodou muitas pessoas – e, se incomodou, também precisamos falar (e ouvir) sobre isso.

A advogada Heloísa Blasi, filha de Aloisio Blasi, provavelmente o servidor TAE número 1 da UFSC e braço-direito do reitor Ferreira Lima, também testemunha da história pelo lado “interno” e “familiar” da administração daquela época, escreveu seu próprio livro a respeito: “UFSC: em nome da verdade”, com críticas ao relatório produzido pela CMV. Também precisa ser lido por quem pretende formar opinião sobre o assunto. Um bom trabalho, rico em fatos documentados, que também não pode ser de todo imparcial nas passagens de caráter opinativo (assim como foi o relatório da CMV) mas tem a grande virtude de tornar público o contraponto às opiniões do documento “oficial”.

As críticas do livro devem ter sido consideradas pela CMV e influenciaram um segundo trabalho, que foi o parecer emitido pela Comissão responsável pelos encaminhamentos às recomendações do relatório da CMV (a Comissão da Portaria 7/2023/GR/UFSC). Neste parecer, disponível no processo que está sendo analisado no momento pelo Conselho Universitário, a Comissão se concentra em fatos documentados relacionados a delações, contra membros da comunidade universitária, aos órgãos de “segurança” do regime militar instaurado a partir de 1964, deixando de lado as rusgas pessoais, familiares e partidárias que tiravam o foco do primeiro relatório.

Concentrado nesse aspecto fica evidente que, em 1964, diante do Ato Institucional número 1 (AI-1) da junta militar que assumiu o poder no Brasil, a UFSC (como todas as Universidades Federais) cumpriu a ordem e montou sua “Comissão de Inquérito” para denunciar servidores que tenham “atentado contra o regime democrático”. Estes poderiam ser demitidos, com a suspensão da estabilidade no emprego causada pelo AI-1. Ter montado a Comissão de Inquérito não é o grande problema, ruim é que o reitor testemunhou à comissão, por escrito, delatando alguns nomes, didaticamente separados por capítulos (Diretores de Faculdade: o então diretor da Faculdade de Direito, Prof. Henrique Stodieck, com quem tinha divergências diversas, mereceu um texto longo de delação do reitor. Professores: José Galloti e Aldo da Luz foram apenas mencionados como “tivemos ciência” de que foram presos ou chamados pelas autoridades militares. Alunos: os presidentes das entidades Feusc, UCE e Caxif. Funcionários: sem menção a ninguém).

Os principais alvos da delação do reitor, portanto, parecem ter sido seus desafetos políticos Prof. Henrique Stodieck e as lideranças estudantis. Se trouxermos esse enredo para o cenário atual, podemos ter uma compreensão melhor de seu significado:

Vamos supor que um partido político atual (qualquer um!) em poder no Governo Federal do Brasil perceba que perderá as próximas eleições, e não conseguirá reverter sua saída do poder com nenhuma manobra pacífica. Então, com apoio de forças armadas que tenha conseguido arregimentar, cancela as eleições diretas para presidente e bane da vida política seus adversários, rotulando-os de “inimigos da democracia”. Nessa nova fase mais ditatorial, o Governo Federal determina que os serviços públicos todos montem relatórios indicando os nomes dos servidores considerados “subversivos”. E suponha que o nosso reitor escreva um ofício delatando o nome de um diretor de centro, professor, TAE ou estudante que seja crítico da gestão da reitoria.

Acharíamos isso péssimo. E teríamos muita raiva, por muito tempo. Principalmente se nós fôssemos os denunciados, e isso causasse danos a nós ou a nossos familiares.

E tem um detalhe importante: Ferreira Lima sequer mentiu em seu texto, nem agiu fora da lei. Ele escreveu o que de fato ocorria: Que o discurso da oradora não foi controlado pelo diretor Stodieck, que o discurso tinha críticas ao governo, que as entidades estudantis tinham ligações políticas externas com o mundo comunista da época, etc. Tudo isso era verdade! Apenas entendemos hoje, com convicção, que ele não precisava dizer nada daquilo. Porque isso significava entregar pessoas a um monstro opressor, com poder de julgar e punir desproporcional à chance de defesa do acusado, com consequências imprevisíveis.

Felizmente os danos foram poucos, em comparação ao que ocorreu em outros estados brasileiros. Mas, qualitativamente, o problema é o mesmo.

Foi isso que aconteceu na UFSC em 1964. E como não queremos que isso volte a acontecer jamais, de fato precisamos falar do assunto. Porque o risco de que algo parecido volte a ocorrer sempre existe.

É possível que, em nossos dias, processos de perseguição política ocorram. Na Universidade, que supostamente preza por sua autonomia, o Conselho Universitário, Colegiados de Curso e Conselhos Departamentais precisam se lembrar de que são, sobretudo, instâncias democráticas e não estão a serviço de nenhum regime de plantão (seja de direita ou de esquerda), e devem ser fiscalizadores das ações dos órgãos executivos.

Esse foi o resultado positivo do debate. Pode ser tenso, mas temos agora dois documentos do tipo “tese” e “antítese”, e com essa dualidade é que podemos tentar uma boa “síntese”: Independente da polaridade política, o respeito aos direitos humanos, à justiça e à liberdade deve prevalecer. Com observância à legalidade, mas não se limitando a ela, ou usando-a para justificar atrocidades – porque as ditaduras fazem as suas leis para justificarem-se! Estando no poder, não basta aplicar a lei para estar certo. É preciso ter compaixão aos que sofrem e não estão de posse do poder – e que muitas vezes são seus adversários.

Estar fora da tensão “direita versus esquerda” é às vezes chamado de “terceira via”. Discordamos. Trata-se na verdade da PRIMEIRA VIA, porque ela é anterior e superior à simplificação dialética de “esquerda” e “direita”. A defesa do ser humano, da vida, da saúde, da justiça e da liberdade são posições de bom senso, de quem se submete à ética e não a ditames partidários.

A Comissão 7/2023 propôs um texto para uma Resolução do Conselho Universitário com procedimentos que permitem à Universidade rever homenagens previamente concedidas. Não apenas uma, mas todas. Sempre que achar necessário, a Universidade poderá reanalisar a conveniência e a justiça de se manter (ou não) o nome de uma rua, um prédio, um título honorífico… Ou o nome do campus, no caso atual.  Isso tudo a pedido de qualquer cidadão, inclusive externo à Universidade. É justo.

A proposta prevê consulta pública à comunidade universitária, com amplo direito de defesa e do contraditório, com posterior votação no Conselho Universitário, onde há também representantes da comunidade externa à UFSC. Esse encaminhamento é muito bom e merece nossa aprovação. Uma vez aprovada essa Resolução é que se pode partir para a consulta pública e posterior votação no CUn sobre a permanência ou não do atual nome do campus e de outras homenagens já concedidas.

O nome do campus da UFSC em Florianópolis estará em discussão. É bom que esteja. Ferreira Lima nunca foi tão falado desde os anos 1970. Não o conheci pessoalmente, mas pela leitura dos documentos podemos supor que ele até gostaria de estar de novo em evidência (e talvez reconhecesse que mudaria alguns de seus atos). Mas falemos sobre nossa história e sobre nosso primeiro reitor com o respeito com que devemos falar de nossos pais e avós, depois que nos tornamos adultos e percebemos que eles também tiveram falhas – podendo ser que algumas delas tenham sido graves e exijam, mesmo, correções. Sem que com isso nossos pais ou avós tenham seu papel positivo em nossas histórias apagado ou negado.

A leitura do relatório da CMV, nas partes em que trata de outros assuntos, é até curiosa e traz outros aprendizados. Há uma defesa de Henrique Fontes contra Ferreira Lima como principal responsável pela Universidade, por exemplo. Ironicamente, sem Ferreira Lima, mas com Henrique Fontes, talvez tivéssemos uma Universidade. Mas não uma Federal. Seria mais acanhada e submetida ao Governo do Estado, provavelmente.  Aqueles entre nós que não gostariam de estar sob a ordenança direta do governo catarinense deveriam ter pelo menos um sentimento de gratidão a Ferreira Lima… Por outro lado, aqueles que hoje são mais fãs do Governo do Estado do que do Governo Federal deveriam lamentar que Ferreira Lima tivesse sido tão atuante!

O jogo sempre muda com o tempo. Ferreira Lima aderiu e implantou por aqui a Reforma Universitária, que extinguiu as Faculdades e criou os atuais Centros e Departamentos. Mais econômico, menos gastos com professores… e menos poder nas Unidades Universitárias, com centralização de decisões políticas e financeiras na reitoria. Menos democrático. Para os norte-americanos que induziram essa reforma, parecia bom, contanto que continuassem mandando no poder central do Brasil – o que virou depois de 1985, e hoje devem achar ruim o modelo. Aqueles que hoje são simpatizantes do Governo Federal deveriam ser gratos a Ferreira Lima pela grande ligação da Universidade ao poder central de Brasília e das Unidades Universitárias à reitoria. Mas aqueles que entendem que as Unidades deveriam ter mais autonomia política e financeira e são críticos à centralização do poder deveriam ter certo ressentimento com a Reforma Universitária de Ferreira Lima.

Baseado no que aprendemos com as leituras sobre o nome do campus, podemos concluir que há muitas coisas que devem mudar na UFSC, desde aquela época. Precisamos mudar, por exemplo, procedimentos financeiros.

Há uma passagem maravilhosa no relatório da CMV, porque mostra como a história tende a se repetir. É uma transcrição do Jornal Reforma, da UCE, sobre o afastamento do diretor da Faculdade de Direito: “Um dos motivos que levou o Prof. Henrique Stodieck ao afastamento do cargo da Direção é a centralização total dos negócios administrativos nas mãos da Reitoria. ‘Quando se quer um papel higiênico [afirma o prof. Stodieck] temos que requisitá-lo da Reitoria. Esta leva, às vezes, mais de trinta dias para atender’. As janelas das salas de aula estão com os vidros partidos há mais de um ano. Até hoje não foram substituídos. As verbas da Faculdade, nas mãos da Reitoria, causam um profundo entrave na administração”.

É engraçado como continuamos em situação tão semelhante! E talvez pior, porque a centralização da gestão dos recursos está atualmente muito forte em Brasília. A Universidade, hoje, tem orçamento previsto por Lei, mas não pode usar se o poder executivo federal não o liberar completamente. Ainda pior, na medida em que passa a depender cada vez mais de projetos específicos para captação de recursos, tem cada vez menos autonomia para determinar como e em que vai trabalhar. Com o modelo de Ferreira Lima, trocamos muito da autonomia da Universidade pela possibilidade de acesso a recursos federais. Até que ponto isso vale a pena? Qual o ponto ótimo entre autonomia e apoio? Só acertaremos se pudermos falar aberta e livremente sobre isso, e sobre muito mais.

Ao falarmos assim, abertamente, não se justificarão mais ataques ao busto de Ferreira Lima, na praça da cidadania. Porque não haverá mais algo oculto a ser denunciado, e em vez de focar nossas energias no passado, pensaremos mais no futuro. Poderemos lembrar ele, reconhecendo o valor das boas coisas que conseguiu e o fato eterno de que sempre será nosso primeiro reitor, mas também destacando seus erros que não devem ser repetidos. É só assim, aprendendo de verdade com o passado e com os antepassados, que poderemos sair do ciclo repetitivo de erro-culpa-castigo-vingança-erro-culpa (… ad infinitum) e avançarmos, finalmente, para o século XXI em nossa Universidade.

Em nossa opinião, até seria mesmo mais adequado que o nome do campus fosse algo neutro, capaz de representar a instituição em todas as suas correntes. A mudança teria um caráter didático, desde que seja feita dentro da legalidade e pelas razões certas: não por revanchismo, mas para fixação do aprendizado: o poder não deve ser usado para perseguir pessoas, mesmo que não gostemos delas ou do que elas pensam.

Muitas outras homenagens precisarão ser revistas, sob essa ótica. Inclusive à esquerda. O mesmo tratamento de reavaliação deve ser dado ao título honorífico dado a Fidel Castro, por exemplo. Se não o for, ficará evidente que nossa instituição não está agindo pelos direitos humanos, mas por um apoio indireto à violência ditatorial de sua preferência. Continuaríamos reféns de uma luta bipolar que nunca foi prioridade para o povo brasileiro, nem deveria ser a prioridade de sua Universidade Pública.

Procedimentos disciplinares atuais também precisam ser revistos. Ainda me causa estranheza que desfechos de processos disciplinares não tenham instância recursal dentro da Universidade, hoje em dia. Você, servidor da UFSC, sabia disso? Por uma Portaria de 2023 (1819/2023), o Ministro da Educação subdelegou aos Reitores das Universidades o poder de julgamento dos processos administrativos disciplinares. E um decreto de 2022 do então presidente Bolsonaro (11.123/2022) diz que “não caberá interposição de recurso hierárquico ao Presidente da República ou ao Ministro de Estado em face de decisão proferida em processo administrativo disciplinar proferida com fundamento nas delegações ou subdelegações previstas neste Decreto”.

Baseando-se nisso, o Conselho Universitário, que pelo regimento da UFSC de 1982 deveria ser a instância recursal dos atos do reitor, não recebe mais pedidos de recurso em caso de demissão pelo reitor. Se um dia um reitor quiser demiti-lo por questões pessoais provavelmente teria meios para conseguir isso, sem instância recursal administrativa (não estou dizendo que a atual gestão faça isso; mas estou particularmente preocupado com as próximas).

Bela e democrática justiça a nossa, em que apenas quem puder pagar por bons advogados conseguirá se defender de uma demissão injusta.

Pensando nisso então, para que serve o Conselho Universitário? Por que a demissão de uma pessoa pode ser feita sem a chance de recurso ao Conselho, mas a mudança de nome do campus não pode? Um título honorífico tem mais importância que um ser humano?

Típico da Universidade, essa distorção! O diploma parece ter mais valor que o conhecimento; o discurso, mais valor que o trabalho; e o problema, mais valor que a solução!

Fazer a coisa certa só se justifica plenamente se for pelos motivos certos e também pelos meios certos. A mudança do nome de campus se justifica plenamente com uma adesão irrestrita à defesa da vida e dos direitos humanos, que se sobreponha a interesses políticos e partidários.

Podem acreditar: o mundo até mudou, mas o ser humano ainda é o mesmo dos anos 1960. É capaz de repetir os mesmos erros, sem perceber, às vezes crente de que está certo. Precisamos rever o nome do campus e outras homenagens, mas é tão ou mais grave e urgente que recuperemos pelo menos parte da autonomia universitária (administrativa e financeira) e voltemos a poder fiscalizar e corrigir, por nossos órgãos colegiados, o eventual uso político dos sistemas de justiça e de segurança. 

Se não for por essa conquista mais ampla, se for só com homenagens que a UFSC estiver preocupada, aí é muito pouco. Não trabalhamos tanto só para isso. O trabalhador que faz suas entregas não vai ter a vida muito melhorada apenas com um novo nome no campus – nem nós.

*Fabrício de Souza Neves é diretor do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da UFSC

Artigo recebido às 15h19 do dia 23 de maio de 2025 e publicado às 15h33 do dia 23 de maio de 2025