Por Tiago Kramer de Oliveira*
Melhor seria poder usar este espaço para falar sobre o futuro da UFSC, mas nossa universidade parece estar tomada de vez por fantasmas que precisam ser exorcizados e de verdades a ser encaradas. Como escreveu o historiador e teólogo jesuíta, Michel de Certeau, é preciso enterrar os mortos para dar lugar aos vivos. Não se trata de enterrar o passado, mas de transformá-lo em passado de fato, pois conviver com os mortos sem poder reconhecê-los e lhes dar o merecido rito fúnebre, torna a luta diária dos vivos insuportável. Viver em um eterno presente, onde as feridas permanecem sempre abertas e o futuro é impossível de alcançar, não é mole não.
A relação da UFSC com o regime ditatorial teve episódios tristes e dolorosos. A UFSC perseguiu professores, técnicos e estudantes, interrompeu carreiras e provocou traumas terríveis, individuais e familiares. Cassou direitos de uns para que outros, os preferidos, fossem beneficiados. A Comissão da Verdade instalada na UFSC fez um trabalho sério e demonstrou que o reitor João David Ferreira Lima contribui com o regime de exceção, foi informante assíduo. Comissão da Verdade formada por profissionais renomados na área da História e dos Direitos Humanos. Gente respeitada e respeitável, no Brasil e no estrangeiro. Há mais em jogo do que a sucessão à reitoria, os muitos erros da gestão atual, os ressentimentos e os afetos de ordem pessoal. O que está em jogo é a UFSC, a melhor universidade de Santa Catarina e uma das melhores do Brasil e da América Latina. Não é pouca coisa.
Uma cena desenhada na memória a partir de palavras lidas e ouvidas veio a mente ao acompanhar o triste espetáculo protagonizado por extremistas de direita no Conselho Universitário da UFSC. O episódio é conhecidíssimo e foi protagonizado por Tancredo Neves, então líder do governo João Goulart na Câmara dos Deputados. Em meio a gritaria que se sucedeu à declaração de vacância na presidência da república, Tancredo aos berros entoou: Canalha! Canalha! Canalha! As peripécias do tempo e da memória talvez tenham dado cores e sons mais fortes aos gritos de Tancredo após mais de vinte anos de um regime que pintou tudo cinza e calou tantas vozes.
Há os que digam que o que ocorreu no CUn foi uma simples prova do próprio veneno, uma vez que a reitoria se valeu dos extremistas à esquerda quando foi conveniente e estes possuem livre trânsito para invadirem reuniões, interromper falas e gritar palavras de ordem. Bem-feito então, já que quem brinca com fogo acaba se queimando mesmo. Apesar de o argumento de que a esquerda radicalizada possui pouca aptidão para a vida republicana e democrática ser de fácil defesa à luz dos acontecimentos recentes, tratar os movimentos estudantis em pé de igualdade com a extrema direita é muita falta de noção.
Os estudantes ligados a movimentos e correntes políticas mais à esquerda do espectro político, com perdão da franqueza, não possuem políticos eleitos em número suficiente para encher um fusquinha. Estou falando, claro, de PCB, PSTU, PCO e correntes minoritárias do PSOL. Não representam o pensamento da maioria dos estudantes, mas são ativos e fazem barulho. Para muitos estudantes, a filiação a movimentos mais radicais é passageira, parte do amadurecimento político da juventude.
É bom lembrar que o movimento estudantil possui uma forte tradição de fazer reivindicações e demandas em reuniões e cerimônias. Em 2016, na cerimônia de posse do reitor Luís Carlos Cancellier de Olivo “um grupo com cerca de 70 estudantes entrou no auditório, subiu no palco e pediu a palavra: eles queriam uma resposta de Cancellier a respeito da Moradia Estudantil, que é insuficiente para a quantidade de alunos da UFSC em situação de vulnerabilidade socioeconômica” (APUFSC, 11/05/2016). Cancellier, habilidoso como era para o diálogo, deu espaço e razão aos estudantes, sem deixar a peteca cair. Não é de hoje, portanto, que a UFSC e as demais universidades públicas brasileiras estão acostumadas a lidar com as reivindicações dos estudantes em manifestações que, por vezes, se radicalizam em práticas pouco democráticas e republicanas.
Colocar no mesmo patamar as práticas políticas de estudantes da nossa comunidade universitária com a invasão de pessoas de fora da UFSC, representantes de uma extrema direita que possui poder político hegemônico no estado de Santa Catarina, patrocinadores de uma máquina de destruição de reputação das universidades públicas brasileiras é um erro de avaliação, burrice ou coisa parecida. Mas o buraco é mais fundo, estamos convivendo com colegas que estão felizes em atirar às hienas bolsonaristas membros da nossa comunidade que, discordâncias a parte, defendem a UFSC. Há pessoas cheias de coragem para bradar contra as práticas de parte da esquerda, que merecem mesmo crítica, mas são covardes diante da canalha. Indispostos em sair em defesa da UFSC, covardes demais para protestar com veemência, somam-se à canalha, partilhando dos seus argumentos, covardia e caretice.
As dores e traumas dos perseguidos são ignorados e surge uma solidariedade apaixonada pelos descendentes do gestor máximo da UFSC no período da ditadura. Dentro da UFSC, há gente que concede autoridade a um livro escrito sem qualquer valor científico, uma história-cloroquina sobre a vida de Ferreira Lima, colocando-o em pé de igualdade com o trabalho de profissionais das ciências humanas. O gigantismo da comunidade da UFSC, a produção científica de excelência, o prestígio e contribuição para a sociedade catarinense se apequenam diante de interesses políticos provincianos e mesquinhos, ou da mais simples e rasteira covardia, coberta por um manto de erudição que só os com inteligência rara podem ver.
A UFSC merece muito mais do que isso. Os opositores da reitoria atual precisam entender que a defesa institucional da UFSC vale a uma reunião do CUn e que se o reitor da vez não se posiciona como deveria, a comunidade deve fazer, deixando as diferenças de lado e se posicionando contra o inimigo comum. Os que invadiram a reunião da UFSC e fazem de Ferreira Lima um símbolo da virtude, são os mesmos que mesmos grupos que aplaudiram a perseguição à UFSC feita pela criminosa Lava Jato; distribuíram todo o tipo de mentiras sobre as universidades para propagar ódio e o discurso extremista que levou Bolsonaro ao poder; aplaudiram quando este mesmo Bolsonaro homenageou um torturador; fazem campanha sistemática na mídia local contra a UFSC. É gente que, se pudesse, fecharia a UFSC e usaria o dinheiro para bolsas de estudo em universidades pagas, cuja qualidade (ou a falta dela) do ensino, os baixos salários e alta carga horária dos professores são bem conhecidos. Sobre liberdade de cátedra então, melhor nem comentar.
O reitor atual teve um papel importante para tornar todo o processo mais conturbado e longo do que o necessário. A gestão atual é tão desastrosa e prejudicial à UFSC, que pode mesmo dar vontade de deixar que tudo se lasque. Tomara que a comunidade universitária tenha a maturidade de perceber que por mais que certas demandas pontuais tenham sido atendidas, o quadro geral é de uma incompetência e inaptidão administrativa gritantes e muito prejudiciais. Mas é justamente aí que oposição à atual gestão precisa se mostrar articulada, unida, forte, mesmo que isso signifique defender quem pensa e se expressa de forma diferente. Uma oposição que não tem uma postura firme contra os bolsonaristas e a favor da democracia, não interessa à UFSC.
O professor Alex Degan, que foi submetido a todo o tipo de pressão, teve a coragem de pedir vistas ao parecer original e de defender a mudança do nome do Campus, respondeu à canalha presente na reunião usando a linguagem do deboche, não a das ofensas, não a da violência, não a das mentiras. A mesma canalha que aplaudiu Nikolas Ferreira e sua peruca em discurso de ódio proferido na Câmara dos Deputados, editou e colocou em câmera lenta um trecho do vídeo que mostra o professor Degan reagindo a todo tipo de provocação e à pressão que sofreu desde o momento que pediu vistas ao parecer original. O fato de o professor Degan ter dançado em frente à canalha virou o assunto principal. A extrema direita agiu de forma covarde, deturpada e doentia ao tentar destruir reputações, coisa típica do bolsonarismo. O pior é que a canalha teve algum êxito, ajudada por gente que deveria estar ao lado do professor Alex, na defesa da UFSC e da democracia.
Alex Degan é diretor do CFH, um profissional sério, comprometido, professor dedicado. Fez defesa intransigente da UFSC e da democracia, mesmo sendo um dos principais críticos da atual gestão. Somou-se ao movimento estudantil sobre a mudança do nome do Campus, mesmo discordando muitas vezes de posições mais extremadas. E dançou diante do ódio, da canalha e dos covardes.
Em diversas culturas os ritos fúnebres são acompanhados por danças. Talvez seja isso que esteja faltando, uma dança para celebrar a morte da UFSC. provinciana, mesquinha, alinhada com elites locais pouco comprometidas com a democracia e com os direitos humanos. Uma dança que possa também celebrar a vida, a vida de uma UFSC plural que cresceu pela força da sua comunidade, pela qualidade de seus professores, estudantes e técnicos. E que finalmente se possa falar de futuro, de uma UFSC mais humanitária, inclusiva, democrática e republicana.
*Tiago Kramer de Oliveira é professor do Departamento de História do CFH/UFSC
Artigo recebido às 20h57 do dia 8 de junho de 2025 e publicado às 8h19 do dia 9 de junho de 2025