*Por Fábio Lopes
Você sabia que boa parte da documentação apensada à proposta de mudança de nome do campus estava ilegível nos autos do processo? Provavelmente não. Aliás, quase ninguém tinha conhecimento disso, o que inclui 99,9% daqueles que votaram na referida proposta ou a apoiaram entusiasmadamente.
E sabem por que as pessoas ignoravam o fato de que as cópias eletrônicas de muitos documentos estavam corrompidas? A resposta é simples e óbvia: elas não leram o processo. A rigor, nem sequer o abriram para uma passada de olhos que fosse.
É que, em momento algum, a obtenção da verdade sobre o Prof. Ferreira Lima esteve em jogo na querela que se desenrolou recentemente no CUn. A parada já estava decidida antes da consideração dos autos e antes dos argumentos da defesa. Se alguém estivesse de fato interessado em compreender e interpretar a atuação do ex-reitor, não gritaria tanto ou vaiaria tresloucadamente quem defende um mínimo de compostura e racionalidade no exame da questão. Ouviria o outro lado. Estudaria as informações disponíveis, em vez de confiar cegamente no que a Comissão de Memória e Verdade declarava sobre o caso.
Eram muitos os interesses mesquinhos a mover os defensores da mudança do nome do campus.
Para os representantes do movimento estudantil – impotentes diante de problemas como a evasão escolar, a falência de dezenas de cursos de graduação ou a qualidade deplorável da infraestrutura das salas de aula –, a retirada da homenagem ao fundador da universidade foi uma mão na roda: esta lhes ofereceu a oportunidade de simular que estão fazendo política, o que, convenhamos, é muito mais fácil do que fazer política mesmo, mudar a realidade, procurar soluções, enfrentar seus padrinhos na instituição.
Para o reitor, por sua vez, as sessões abertas do CUn chegaram também em boa hora. Por meio delas, ele reforça o pacto com a sua base eleitoral, que se formula nos seguintes termos: “Não esperem de mim que eu faça nada de objetivo para melhorar a vida de vocês. Mas ao menos posso dar-lhes um prêmio de consolação: deixo vocês mandarem no pedaço, permito que a tigrada toque o terror por lá de vez em quando.” E o pior e o mais triste é que essa barganha medíocre e em tudo análoga ao modus operandi bolsonarista funciona (para detalhes sobre esse modus operandi, ver meu livro, Sadopopulismo: De Putin a Bolsonaro, de 2020).
Já para a vice-reitora, o tipo de caça às bruxas que se implementou contra a reputação do Prof. Ferreira Lima é um ambiente em que ela desde sempre nada como um peixe na água. Afinal de contas, o que pode ser mais vantajoso e confortável para alguém que não vive no real nem se interessa por ele? O que pode ser mais recompensador para alguém cujo habitat é o mundo dos símbolos, das palavras de ordem e da ideologia, que é precisamente o mundo criado por eventos como essa pseudodiscussão sobre o nome do campus?
Cabe ainda mencionar um motivo mais geral e abrangente para que a proposta tenha prosperado e conquistado tantos corações e mentes: a memória e a história da Operação Ouvidos Moucos. Explico
Esta é uma universidade que vive sob o peso da culpa. Ao tempo em que o Prof. Cancellier foi preso, a comunidade universitária ou bem ficou indiferente, ou bem correu para debaixo da cama a tremer de medo (houve também quem se rejubilasse com a detenção do reitor, mas deixemos isso para lá).
Estávamos em pânico por causa de um corregedorzinho valentão, que surfava na onda da Lava Jato (um corregedorzinho, repito; um inspetor de quarteirão, não um general; um cabo ou um soldado, se quiserem uma metáfora mais contemporânea).
Daí essas homenagens todas ao Prof. Cancellier que até hoje se repetem regularmente. À primeira vista, elas são uma maneira de continuar a reverenciá-lo, mas não é esse, de modo algum, o seu sentido profundo. Em tais eventos, trata-se, na verdade, de reescrever a história, de apagar o nosso comportamento indigno à época, a nossa covardia, a nossa miséria moral. Tudo ali é encenação: fingimos ter sido muito combativos; fingimos que o que produziu a paixão do reitor foi só a PF, não a nossa paralisia grotesca diante das arbitrariedades cometidas.
Ora, o caso Ferreira Lima foi mais um ato na comédia de tentar falsificar o episódio que culminou com o suicídio do reitor. Todos os defensores da mudança de nome do campus se comportavam como se fossem bravos soldados da liberdade, como se quisessem se convencer e nos convencer de que já eram assim no momento em que o Prof. Cancellier ruminava praticamente sozinho a sua dor e seu sofrimento.
O Prof. Ferreira Lima sempre foi apenas um pretexto, um bode expiatório. E não faltassem tantas provas disso – os gritos, as vaias, a sanha punitiva, os rebolados, a incapacidade de escuta do outro, a simulação de que se leu o que estava ilegível –, destaco abaixo dois fatos que me parecem definitivos para mostrar que tudo nunca passou de uma farsa.
O primeiro fato que quero sublinhar é o de que o presidente dos trabalhos – o maestro de todo o processo, que desempenhou alegremente o papel de algoz principal do primeiro reitor da UFSC – recebeu em 2023 a Medalha João David Ferreira Lima (https://www.cmf.sc.gov.br/proposicoes/Resolucoes/0/13/0/90242). É preciso muito sangue de barata para fingir que essa aberrante contradição não cintilava no coração da proposta de mudança de nome do campus.
O segundo fato, tão escabroso quanto o anterior, se deu no momento derradeiro da última sessão, pouco antes da votação final. Um jovem representante da CVM vestiu-se de juiz do mundo e, como se disparasse a sua bala de prata, apresentou o caso de um cidadão supostamente demitido e perseguido pelo Prof. Ferreira Lima.
Nem a ele nem a seus apoiadores incomodou saber que aqueles dados que ele brandia como se fossem as Tábuas da Lei não constavam dos autos e jamais haviam sido aventados pela CVM ao longo do processo. O juiz Moro, outrora campeão das violências jurídicas contra o direito de defesa, fez escola entre aqueles que se diziam seus críticos.
Ocorre que, como se descobriu logo depois, a bala de prata saiu pela culatra. Em 2008, a pessoa citada como vítima do fundador da UFSC recebeu também a Medalha João David Ferreira Lima (https://noticias.ufsc.br/2008/03/professores-da-ufsc-recebem-a-medalha-joao-david-ferreira-lima/).
Alguém é capaz de me explicar que sentido faz uma pessoa supostamente violentada por outra aceitar uma homenagem que leva o nome do seu perseguidor? Cartas para a redação.
Por tudo isso, votei no parecer de vistas. O que o seu signatário pedia era que considerássemos o processo dando tempo e espaço para a reflexão. Ou melhor: ele pedia um pouco mais que isso. Que essa reflexão convergisse para uma consulta pública, o mais democrático dos instrumentos para resolver tão difícil e delicada pendência. Mas a atual Reitoria e seus amigos preferem decidir as coisas na força bruta mesmo. Eles e elas têm medo de Virginia Woolf.
P.S. 1: Por falar em demissões, você sabia que um colega docente acaba de perder seu cargo em decorrência de processo disciplinar? Você sabia que ele solicitou ao Conselho Universitário que revisasse a decisão do reitor, mas este último negou admissibilidade ao pedido de recurso? Você sabia que a negativa se deu com base em uma interpretação altamente questionável de um decreto do governo Bolsonaro (que, quando interessa, eles dizem desprezar)? Não, você não sabia de nada disso. Na verdade, nem o Conselho foi informado de que, ao celebrar núpcias com a ordem legal bolsonarista, o reitor não reconhece mais o CUn como instância recursal. O Magnífico agora é plenipotenciário. Imagine o que um eventual ocupante do cargo não pode fazer se um general – ou menos que isso: um corregedorzinho saliente ou inspetor de quarteirão – mandar.
P.S 2.: Ficarei um tempo sem escrever neste espaço. Em breve parto para uma temporada de três meses na Universidade de Toronto para estudar com o maior historiador do mundo (historiador mesmo, desses que falam nove línguas e espremem os arquivos até extrair deles a verdade). Até breve, Grupo Escolar Universidade Federal de Santa Catarina.
*Fábio Lopes é diretor do CCE/UFSC
Artigo recebido às 19h47 do dia 19 de junho de 2025 e publicado às 08h43 do dia 23 de junho de 2025