A fábula da internet benigna

*Por Fábio Lopes

A denúncia feita pelo influenciador Felca abriu o debate sobre pedofilia e adultização na internet. O destino provável dessa polêmica – incandescer por um certo tempo e depois ser substituída por algum outro trending topic – deveria nos ensinar que o problema das redes sociais não é só de conteúdo mas também, e principalmente, de forma.

Refiro-me ao fato de quem frequenta o Instagram e congêneres se submete voluntariamente às imposições dos algoritmos. Estes, por sua vez, tendem a produzir nada menos do que uma catástrofe cognitiva, intelectual, política e afetiva. Explico.

A forma como os códigos operam incitam-nos a permanecer logados, a ansiar pela repetição ao infinito das mesmas sensações (basicamente, gratificação e ultraje), a não tolerar textos e vídeos longos ou profundos, a consumir um conjunto muito restrito de informações, valores, interesses e opiniões. Pior: tudo nesse arranjo conspira para que introjetemos uma ideia de tempo circular, em que somos devolvidos sempre ao mesmo ponto, ao mesmo gozo triste, a uma sucessão de eventos e experiências estruturalmente equivalentes umas às outras. Ora, um tempo circular é, por óbvio, um tempo que enfraquece as noções de projeto, futuro, esperança. O nome disso, caso não tenham notado, é niilismo.

Uma saída fácil para quem se dá conta dessa condição é culpar as big techs. Mas é óbvio que esse é um gesto autocomplacente. Reduzir o dilema das redes sociais à perversidade de quem as gerencia e lucra com elas é elidir o fato de que nós decidimos e aceitamos lançar-nos em seus abismos mesmo sabendo onde estamos nos metendo e que riscos corremos.

Sempre que converso com as pessoas sobre isso, elas dão algum motivo supostamente incontornável para, apesar de tudo, ficarem conectadas: trabalho, divulgação, acesso a notícias, networking, etc. Ao que (salvo exceções em que percebo que as redes são mesmo essenciais à vida do meu interlocutor) costumo responder: “Pois é: você tem uma boa razão para estar on – e um milhão delas para desligar-se.” Cai o pano.

Não é impossível que o movimento deflagrado por Felca resulte em medidas capazes de proteger menores de danos psíquicos e morais. Isso é bom. Mas, por outro lado, temo que essa agitação criada em torno da pedofilia e da adultização acabe por reforçar uma ilusão: a de que exista uma experiência virtual benigna.

Eis, a meu juízo, uma marca da vida contemporânea: confrontar-nos com baciadas de casos tão grotescos de comportamento que fazem com que nos sintamos bem dentro de nossas peles. Uma espécie de cogito autopiedoso se consolida: “Não sou pedófilo (feminicida, fanático, golpista, etc.), logo sou bom”. O que quero dizer é que, ao permitir que formas de conduta e pensamento antes clandestinas circulem à luz do dia, as redes sociais rebaixam o sarrafo da moralidade e da integridade intelectual. Em outras palavras, o grotesco que agora se revela a céu aberto funciona para nós como bode expiatório. Cria-se assim a sensação de que o bem é simplesmente o oposto desse mal praticado de forma tão radical e explícita.

O bolsonarismo, a propósito, é uma das formas de gerar essa ilusão de conforto e adequação em quem não o aceita. Ele não produz estragos apenas em seus seguidores. Sua força deletéria se abate sobre adversários sob a forma da suposição de que bondade e a virtude são sinônimos de não ser bolsonarista. A vida moral e intelectual deixa de ser um desafio e passa a se dar como um campeonato que vencemos sem esforço algum, já que tudo que nos cabe é ser melhor do que ogros e imbecis.

Não nos enganemos: as redes sociais resistem às regulações, mas a verdade é que podem sobreviver perfeitamente a algumas concessões nesse terreno. Elas têm alguma gordura para queimar. A tal “liberdade de expressão” não precisa ser absoluta. O importante para as big techs é que se garanta espaço suficiente para que um quantum relevante de formas bizarras de agir e pensar continuem a se apresentar. É o que basta para convencer os “normais” – nós – de que, não sendo eles mesmos bizarros, estão automaticamente salvos e perdoados.

Um dia, quem sabe, haveremos de perceber que as figuras monstruosas e aparentemente disfuncionais na internet são profundamente funcionais para as redes sociais: elas nos consolam. Elas nos persuadem de que temos defesas sólidas o bastante para nos preservar dos perigos e demônios que habitam os computadores e outros gadgets. E assim, com a alma razoavelmente leve e a consciência aceitavelmente feliz, entregamo-nos à destruição da inteligência e da sociabilidade perpetrada pelo algoritmo.

*Fábio Lopes é professor do CCE/UFSC

Artigo recebido às 13h03 do dia 21 de agosto de 2025 e publicado às 13h21 do dia 21 de agosto de 2025