Por Fábio Lopes*
Tem gente que não gosta quando digo que sou um intelectual público. Acham pedante.
Não estão entendendo nada: ser um intelectual público não é autoelogio. É uma condição difícil de ser sustentada. Pensar à vista de todos é uma exposição enorme. É arriscar-se a dizer bobagens diante de incontáveis testemunhas. Ou melhor: é muitas vezes dizer mesmo um monte de bobagens, já que, no ofício de ter que responder às circunstâncias e analisá-las no calor da hora, o mais comum é errar feio.
Mas de vez em quando a gente acerta.
Eu, por exemplo, disse um milhão de vezes, neste fórum e em outros espaços, que a maneira como o Conselho Universitário vinha sendo tratado pela Reitoria não tinha como acabar bem.
Consideremos o caso das sessões abertas. Não que elas sejam em si um problema. A questão é, em primeiro lugar, a frequência demasiada com que o expediente é atualmente usado. É um erro substituir os ritos consagrados do Estado Democrático de Direito por um assembleísmo muito mais incerto, desregulamentado e vulnerável à pressão de grupos organizados sem mandato nem responsabilidades legais pelos atos e deliberações que querem impor pela força.
Mas o defeito maior das sessões abertas promovidas pela Reitoria nem é esse. É a incapacidade do Reitor de cumprir a obrigação de conter a multidão. Ninguém está pedindo que ele seja um ditador. Só que ele coloque ordem no recinto com medidas muito modestas.
Quais medidas? A primeira ação necessária seria submeter ao Conselho a proposta de abrir as sessões ao público e de permitir que terceiros entrem na sala em que as reuniões acontecem. Isso bastaria para dar um sinal às pessoas de que elas estão lá como convidadas e, portanto, como entes subordinados às regras que vigoram na Casa e à autoridade de quem legitimamente faz parte desta.
A segunda medida seria, no início das sessões, reiterar aos convidados que aquele é um lugar sagrado, regulado por um regimento e por uma processualística sofisticada, construída por décadas – séculos na verdade – de práticas e correções.
A terceira medida seria repreender qualquer um que insista em violar as regras. Nada de vaias, gritos, pressões, agressões, batucadas, carnavais fora de época. Os convidados estão lá para assistir em silêncio aos trabalhos e aprender como a instituição funciona. Como a democracia funciona. Quando um conselheiro discorda de outro, não o interrompe, grita, ataca. Espera a vez. Por que os outros, que nem do Conselho são membros, teriam o direito de transgredir essa norma?
A quarta medida seria simplesmente aplicar a lei, interrompendo sessões que eventualmente escapassem ao controle.
Falo isso de cadeira, como alguém que viveu situações desse tipo como presidente dos trabalhos. Na greve, queriam que eu abrisse a sessão do Conselho do CCE a grupos interessados. Comportei-me de acordo com os preceitos que acabei de elencar. Funcionou. Tivemos, sim, a presença de terceiros na reunião. Mas eles foram impecáveis na conduta. Surprise, surprise: a função paterna e o império da lei funcionam.
O reitor, no entanto, prefere outro caminho: o de deixar o rock rolar. Já mostrei em outro artigo que isso é método, não apenas expressão de leniência e fragilidade (embora o método, nesse caso, seja conveniente a uma personalidade de fato leniente e frágil). Não vou aqui me repetir sobre isso.
O que importa é que, embora julgue tirar dividendos políticos e eleitorais de sua forma de agir, o reitor talvez esteja começando a perceber que os perigos para os quais eu repetidamente chamei a atenção não dizem respeito só à destruição da institucionalidade mas também a seus planos de reeleição.
É muito divertido e excitante quando o vento das multidões sopra a nosso favor. O diabo é que o vento vira. De uma hora para outra, o auditório antes ocupado pelos nossos apoiadores passa a abrigar inimigos.
Estava na cara que um dia outras forças políticas, como no samba famoso, iam entrar “pela porta aberta de um coração descuidado”. Pois esse dia chegou.
Na última sessão do CUn, uma turma ruidosa contra a mudança do nome do campus veio gritar suas teses em decibéis há muito tempo “autorizados” e “legitimados” pelas práticas constituídas pelas sessões abertas anteriores.
O domínio que uma certa esquerda (falo em “certa esquerda” porque existem outras esquerdas, “um Oriente ao oriente do Oriente”, como no poema de Pessoa) antes imaginava ter do ambiente começou a se desfazer. Os dividendos que o reitor supunha acumular dessa configuração até então favorável tiveram uma semana de queda vertiginosa na Bolsa de Valores Distorcidos.
Os sinais de que os antigos donos do pedaço sentiram o golpe estão claros. Foi curioso ver quem até então tinha pouco apreço pela institucionalidade querer resgatá-la quando era vaiado ou quando alguém gritava em seus ouvidos.
Restou-lhes a resposta precária de uma dancinha que, em todo caso, é a cara de uma revolução ideológica, cultural e comportamental perfeitamente idiota e irresponsável que, no entanto, se casa certinho com a amorfia ideológica do reitor e a visão de mundo da vice-reitora (não por acaso, ela aparece rindo no vídeo, ao passo que, consternado, deixo o auditório da Reitoria). Uma revolução que, graças à parceria entre um omisso e uma pessoa com tendências políticas muito enviesadas e partidárias, ganha ares de postura hegemônica.
O vídeo que retrata a violação evidente e grotesca do decoro da Casa viraliza nas redes sociais como se representasse a universidade, quando, na verdade, representa bem menos que isso: a doença infantil de uma certa esquerda que, em consonância com a pauta da vice-reitora e sob a batuta de um reitor que se criou politicamente na direita e hoje não tem posição sobre nada, impõe-se a uma universidade distraída, alienada, intimidada ou ocupada demais com interesses individuais para avaliar o que está acontecendo e reagir.
A elite catarinense, por sua vez, se insurge contra uma proposta que consideram ofensiva à sua própria memória (sim, elites também têm uma memória para chamar de sua, ainda que uma certa esquerda julgue ter direitos exclusivos sobre o termo e seus usos).
São uns provincianos? Talvez. Mas, aparentemente, mais provinciana ainda é uma elite universitária que acha que pode criar regras de ocasião e não viver o dia em que a criatura se volta contra o criador. Mais provinciana é uma elite universitária que acha que pode pôr em prática suas fantasias de poder sem negociar com a elite catarinense.
Estou saindo do Conselho. Perdi feio a eleição no CCE. Foi o preço que paguei por ser muito mais um intelectual público do que um político profissional. Mas antes de deixar o CUn permito-me um último conselho: cuidado.
A sessão da semana passada foi complicada? A próxima será muito mais quente. A dancinha jogou gasolina na fogueira. Membros externos à UFSC virão aos montes tentar conter o que julgam ser desvios da universidade. E querem saber? Não estão completamente certos mas também não estão completamente errados. O problema é justamente que farão a crítica à sua maneira, não à maneira da universidade em sua tão negligenciada função autocrítica.
Encontrarão um CUn esvaziado de poder e uma esquerda agora tentando desesperadamente preservar a ordem que ajudou a desorganizar. Encontrarão, a rigor, uma certa esquerda louca para fazer desse embate uma demonstração de que o fascismo bate às portas e de que, portanto, é preciso apegar-se ainda mais fortemente aos valores e condutas que essa mesma esquerda já professa e pratica. Last but not least, encontrarão uma vice-reitora que acha isso incrível e um reitor que até aqui havia deixado o pau cantar por razões táticas mas também, como se descobrirá agora, por total incapacidade de se posicionar com firmeza sobre qualquer assunto que seja. Um reitor do qual, a rigor, não sabemos nem saberemos o que pensa sobre o caso David Ferreira Lima (e, by the way, sobre tudo mais). Um reitor que quer agradar os defensores da mudança de nome do campus ao mesmo tempo que guarda consigo a Medalha João David Ferreira Lima ganha da elite catarinense em 2023, quando o relatório da CVM já era de pleno conhecimento de todos, todas e todes.
*Fábio Lopes é diretor do CCE/UFSC
Artigo recebido às 9h30 do dia 9 de junho de 2025 e publicado às 10h44 do dia 9 de junho de 2025
