O palco errado

*Por Daniel Vasconcelos

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz. 
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. 
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), Tabacaria, 1928


Os versos acima, do pseudônimo Álvaro de Campos, do gênio Fernando Pessoa, sempre provocam em qualquer um de nós certas reflexões profundas. A principal delas: somos quem somos, ou apenas representamos um personagem? E se o personagem falhar em cena, sendo a cena a vida real? O que resta? Mas essa conversa não é sobre poemas, embora seja, sim, sobre personagens e máscaras.

A UFSC vem penando nos últimos anos pelas inabilidades e incompetências de uma gestão que se vendeu como uma coisa, mas se revelou outra. Personagens de si mesmos, reitor e vice-reitora conduziram, nos meses que antecederam as eleições de 2022, na qual saíram vencedores, encontros e debates que visavam “pensar a UFSC” (sic), mas que apenas costuravam suas candidaturas à gestão. E os personagens assumidos naquele momento eram de que se constituíam nos melhores, nos mais capazes, para conduzirem o destino da universidade. Na visão que traziam, em postagens aqui e ali sobre a instituição, mostravam as alegadas ineficiências da gestão anterior – aquela que enfrentara pandemia, negacionismo, ministros da educação que não recebiam reitores, um presidente flagrantemente anti-universidade e a total falta de recursos – e garantiam serem os únicos capazes de consertarem as coisas que não iam bem. A combinação era a de personagens perfeitos, gestor e educadora, e que dali em diante tudo seria diferente.

Quase quatro anos depois, não se vê mais o mesmo olhar crítico que filmava calçadas com mato ou cercas com problemas enquanto se dizia “é incompetência”. Mas continua-se com os mesmos problemas que antes se acusava nos outros, e problemas ainda maiores.

A universidade anda se desmontando pela ação do tempo, dia a dia, mas não se vê nada de efetivo tentando impedir a depreciação contínua desse patrimônio público. Normativas importantes seguem engavetadas, a defesa institucional da universidade anda vergonhosamente enfraquecida, mas disso pouco se fala. O olhar, antes “crítico”, turvou-se atrás da máscara. O que se viu, no entanto, na última reunião do Conselho Universitário, foi uma luta fratricida dentro do próprio núcleo que, um dia, lá atrás, vestiu uma máscara de capacidade, competência, diálogo, altruísmo e outros etceteras, mas não entregou o que dizia ser capaz de entregar. Uma luta para se descolarem, ambos os lados, de uma implícita confissão de incapacidade de fazer sequer o mínimo para que a universidade permanecesse funcional, após o momento em que assumiram os controles da nave mãe, em julho de 2022.

“Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me./ Quando quis tirar a máscara/ Estava pegada à cara”. O triste fim do personagem foi um espetáculo bizarro: usar o espaço mais nobre da universidade, uma sessão do seu Conselho Universitário, para fazer política pessoal de mau gosto, para expor desafetos, para, quem sabe, angariar apoios para a próxima campanha eleitoral: para lançarem-se “alternativas” dentro da alternativa que foi mal sucedida por não ter sido alternativa o suficiente… A discussão que se seguiu revelou as tripas expostas de um haraquiri reputacional: os principais personagens ali estavam, um ao lado do outro, mas não se podiam olhar nos olhos, porque acusações sérias pesavam de uns sobre os outros naquele momento, e não souberam se conduzir com a grandeza que a função exige, e terminarem juntos o mandato recebido das urnas, pela comunidade universitária, mesmo que havendo divergências, mas em nome da instituição, em nome da liturgia que uma função como essa demanda daqueles que na sua liderança tomam parte.

Escrevo essas reflexões com relativo atraso, sim, porque quando assisti aquele espetáculo grotesco me pus em desassossego diante do que vi. Lembrei-me desses versos de Pessoa vendo aquela cena bizarra. O incômodo com a queda: sim, a palavra é essa, esse conceito quase escatológico, uma queda – do bom senso, da razão, da compostura, da lealdade à instituição, e, claro, das máscaras dos personagens – o incômodo daquela queda não me deixou em paz, até hoje. Uma universidade deveria ser, aos olhos de qualquer um de nós, maior do que as vaidades pessoais de personagens fraquinhos, que deixaram a máscara apegar-se à cara, mas não eram nada daquilo que prometiam representar.

Não sou do ramo, mas como muita gente eu também sei que existem muitas maneiras de recitar o famoso verso “ser ou não ser? eis a questão”, de Shakespeare. Um grande ator empresta vida ao personagem, quando recita tais palavras com a profundidade que a pergunta impõe. Maus atores não arranham sequer a casca, não chegam sequer à tangente de uma questão como essa. Bons textos, sozinhos, não fazem bons atores. Mas bons atores dão vida e grandeza a qualquer texto, mesmo aos mais rasos. No ano que vem essas mesmas pessoas vão de novo botar máscaras no rosto e se vender como grandes atores e atrizes, capazes de dar profundidade ao Hamlet universitário. Será que a comunidade universitária vai, de novo, cair nessa interpretação chinfrim, nessa ópera bufa, cantada em desafino, sem maestro, sem partitura, com música mal ensaiada, da capo al coda e al fine? Gente que levou as brigas intestinas da administração para uma reunião do CUn se perdeu profundamente no personagem. Talvez, como o eu lírico de Álvaro de Campos, tenham deixado a máscara se apegar à cara, mas nós sabemos que é apenas jogo de cena. Cena ruim, muito ruim, por sinal. O CUn não deveria ser palco. A universidade merecia ser tratada com respeito.

*Daniel Vasconcelos é professor e chefe do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSC

Artigo recebido às 15h52 do dia 6 de novembro de 2025 e publicado às 17h18 do dia 6 de novembro de 2025