A barbárie e os antropólogos

Pessoalmente, simpatizo com muitas das causas que a professora Paula Brügger (artigo publicado no Boletim da Apufsc nº 590, de 23/04/07) serve com dedicação e coragem. Mas devo entrar nesta discussão, que ela mesma propõe, discordando de seus juízos sobre a Farra do Boi e os antropólogos. O ofício dos antropólogos não é aprovar ou condenar práticas: é entender como, queiramos ou não, há pontos de vista diferentes sobre qualquer assunto, pontos de vista plausíveis pelo menos para quem os sustenta, não raro intoleráveis para muitos outros. É isso, grosseiramente, o famigerado relativismo. Certo, o antropólogo é também um cidadão, e como tal tem seu próprio ponto de vista. Como poderia discordar das razões expostas pela professora Brügger? A compaixão, a tolerância, o respeito ao outro são os valores oficiais (devidamente honrados ou não) da nossa era, que, aliás, os antropólogos advogam com entusiasmo. Há provavelmente muito antropólogo que dissente profundamente da Farra do Boi e da ética, a política e a estética a ela anexas. Mas, salvo que ele esqueça, como cidadão, de toda a antropologia que aprendeu, vai ter que lembrar de um paradoxo chato: desde há séculos, inúmeros povos que atribuíam um valor positivo a coisas medonhas como a caça, a guerra ou até o canibalismo, vêm sendo escravizados ou simplesmente apagados – junto com a natureza em torno –, por uma civilização que pregava e prega a compaixão, o amor e o humanitarismo. Hoje mesmo, essa civilização, a nossa, torna-se a cada dia mais convicta dos valores humanitários e mais nociva para a humanidade e para o planeta em geral. Até o ponto de haver fundadas suspeitas de que o próprio planeta planeje desembaraçar-se de nós. É só ler os jornais.

Mas os leitores podem se sentir confusos com esse paradoxo. De que estou a falar? Vejamos um exemplo: se mal não lembro, é no final dos anos 80 que a Farra do Boi é por primeira vez denunciada como uma orgia cruel. A acusação pode cair em exageros, mas tem fundamentod+ no melhor dos casos, um boi é torturado psicologicamente, e finalmente morto à vista de todos, no meio de uma festa ruidosa. Os que mais se escandalizavam (ou escandalizam) com essa prática vinham de cidades como São Paulo ou Porto Alegre, onde incontáveis rebanhos são cada dia imolados humanitariamente em aras do culto ao espeto ou à proteína. Nessas mesmas cidades, centenas de milhares de outros animais são mantidos em reclusão perpétua e sistematicamente castrados para atender às necessidades afetivas da espécie humana (são aqueles que designamos com o eufemismo de animais de companhia). Mesmo se todos seus habitantes fossem veganistas estritos, eles continuariam assentados sobre milhares de quilômetros quadrados de moradia e plantação de onde toda vida animal livre foi sistematicamente erradicada. Deixemos para outro dia o que acontece lá com uma outra espécie de animais, os seres humanos.

Em resumo: as centenas de farristas sanguinários vivem (viviam) numa região mais ou menos idílicad+ as pessoas compassivas vinham (vêm) de cidades assoladas por uma violência que, claro está, não procede delas, e de uma Farra muito maior que nem sempre é uma festa. Mas estaríamos tentando desculpar algo ruim pelo vil motivo de que sempre há algo pior? Não. Trata-se de morais muito diferentes.

Na farra do boi, como nas festas bárbaras em geral, a violência e a dor são explícitas e intencionais. Por isso repugna aos cidadãos compassivos das cidades onde nunca as crianças (nem quase nunca os adultos) assistiram à morte de um frango. O sofrimento neste caso é oculto e sempre acidentald+ o que importa é que a carne seja nutritiva e lucrativa, a dor do animal é delegada de um lado aos magarefes e de outro aos biófilos. Não pode ser coincidência que muitas sociedades “cruéis com os animais” (acreditem, morrer de uma flechada não é doce) convivam com uma vida animal rica e autônoma, enquanto que as sociedades compassivas se compadecem sempre de seres que já não mais existem por perto. É claro que não vai ser a crueldade que faça agora ressuscitar a biodiversidade, mas, para viver a história de um modo mais consciente e menos simplório, é bom perceber que os valores humanitários, talvez à revelia de seus arautos, têm sido uma peça importante na construção de um modo de vida em que a violência é colateral, especializada e decerto muito mais eficiente.

A “luta contra a barbárie” tem sido com demasiada freqüência a palavra de ordem no progresso de uma ordem mais predatória e excludente. A abolição dos sacrifícios humanos e o canibalismo auxiliou a implantação do trabalho forçado nas minas e nas plantações da América, e o colonialismo na África reivindicou o mérito de coibir o tráfico de escravos na África. Vejam de novo nos jornais o preço de revogar as tiranias no Oriente Médio.

Talvez seja por isto que os antropólogos nutram essa simpatia ambígua e escandalosa por sociedades “bárbaras”, onde a violência é explícita, ritual, marcada e, afinal, escassa, e não, como na nossa civilização compassiva, uma externalidade que prolifera nas margens sem pai nem mãe reconhecidos. A Farra do Boi talvez desapareçad+ mas é provável que não seja por causa da militância biófila, e sim por uma pirataria imobiliária que não deixe mais campo para correr nem mais boi que aquele que cabe nas bandejinhas de isopor do supermercado (farras contra as quais a professora Brügger também milita).

No mundo ideal dos manifestos, os vilões têm pelo menos a gentileza de se agrupar no mesmo saco: consumistas, antropocentristas, capitalistas, especistas, sexistas, racistas, imperialistas. A antropologia faz o serviço de mostrar que tudo isso é mais complexo, e contribui assim a lutar contra essa endemia da civilização: a hipocrisia involuntária.