Fundação estatal para o Hospital Universitário é equívoco, diz professor

Ex-diretor do Hospital Universitário entre 1992 e 1996, o professor e médico pediatra Carlos Eduardo Pinheiro, o Maninho, atualmente é chefe da unidade neonatal do HU. No dia 23 de agosto, ele concedeu a entrevista abaixo à Apufsc, na qual comenta os problemas vividos pelo hospital e avalia o projeto de fundação estatal apresentado pelo governo Lula. Confira:

Boletim da Apufsc – Quais os principais problemas e dificuldades que o HU enfrenta do ponto de vista administrativo?

Carlos Eduardo Pinheiro (Maninho) – Não estou muito a par, atualmente, da administração do hospital. Estou afastado da alta administração do HU há muito tempo, mas, em geral, as maiores dificuldades são a reposição da mão-de-obra que se aposenta ou a dificuldade de ampliar seus serviços, além da falta de verba para adquirir novos equipamentos. Há verba suficiente para a manutenção do hospital, sem problema algum, mas há muita dificuldade para a aquisição de novos equipamentos. Essas são as duas maiores dificuldades. 

Boletim– O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, afirmou, em artigo no jornal Folha de S. Paulo em 12 de agosto, que a rigidez da administração pública tradicional não favorece a gestão dos hospitais. O sr. concorda com essa afirmação e por quê?

Maninho – Concordo plenamente. Para evitar o roubo, os desvios, tem tanta lei e tanta norma que a administração do hospital fica engessada. Com as normas atuais é praticamente impossível se fazer uma boa gestão de um hospital público. Por exemplo, se um médico da emergência pede demissão e precisar contratar um médico para amanhã, às 8 horas da manhã, faço o quê? Pelas regras atuais é tudo muito complicado. O hospital é uma empresa de alta complexidade. Ele tem hotelaria, assistência médica, manutenção de equipamentos altamente sofisticados, então precisa de agilidade para poder comprar material e, com as leis atuais, qualquer administrador tem que admitir que é muito difícil.  

Boletim – Na perspectiva ainda das declarações do ministro da Saúde, qual sua opinião sobre o projeto de fundação estatal?

Maninho – É preciso fazer duas distinções: para os HU hoje é totalmente absurda essa proposta porque são estruturas que, mal ou bem, ainda mantêm uma qualidade, então é temerário fazer qualquer tentativa de mudança e de alterar a política de pessoal como o projeto faz. Para o HU hoje, é totalmente equivocado. Agora, em algumas situações especiais, como a dos hospitais do Rio de Janeiro que faziam parte da antiga rede do Inamps, é uma idéia válida, porque é uma tentativa de melhorar hospitais públicos. A proposta não tem objetivo de atender o privado, ela tem um percentual de privado, mas os hospitais que hoje funcionam nesses moldes não são instituições privadas. Dependendo da situação, é uma tentativa válida, mas para a universidade é totalmente equivocado. 

Boletim – Considerando então que o modelo atual tem problemas e o projeto de fundação estatal também tem, haveria outra alternativa para a gestão dos HU?

Maninho – O ideal seria fazer um estudo a partir dos próprios hospitais universitários. Os hospitais universitários estaduais paulistas, por exemplo, têm uma experiência com fundação bem interessante, porque a fundação é gerida pelos departamentos de ensino. Então, a fundação dá agilidade, mas não se desvia do seu objetivo, na medida em que é dirigida pelas pessoas ligadas ao ensino. O ideal, portanto, seria que os diretores dos hospitais universitários de todo o país se reunissem e tentassem buscar formas alternativas de gestão, garantindo o aspecto público dos hospitais. 

Boletim – A proposta de fundação estatal e o discurso do ministro da Saúde, na prática, não responsabilizam os servidores públicos pelos problemas de funcionamento dos hospitais?

Maninho – Não, a responsabilidade não é dos servidores. O que acontece é que, nos moldes tradicionais, você não consegue premiar quem trabalha bem e punir quem trabalha mal. Isso é um problema que precisa ser resolvido. O que está acontecendo é uma duplicidade de contratação. Se há uma pessoa que não trabalha e você não consegue punir, o que se faz? Você acaba contratando outra pessoa para o lugar. O modelo atual leva a um número muito grande de pessoas necessárias para fazer o trabalho. Hoje, os HU têm seis funcionários por leito, quando, pelas normas preconizadas, quatro deveria ser suficiente. Não creio que o servidor seja a causa, mas que isto é um problema, é verdade. 

Boletim – Estudos como o da professora de Economia da UFRJ, Denise Gentil, mostram que a Seguridade Social é superavitária, mesmo com a Desvinculação de Receitas da União (DRU), desvios e contigenciamento de recursos. Se os recursos fossem integralmente aplicados no SUS, não resolveria os problemas?

Maninho – Creio que sim. Mas o problema do SUS não são os hospitais. O SUS funciona bem em dois níveis: na atenção primária e nos hospitais. O grande problema é o setor intermediário, que seria o atendimento especializado. Não cabe em nossa análise porque o HU não é o problema. O SUS tem pé e tem cabeça. Falta o tronco. É o grande nó. É o atendimento com o neurologista, é o exame de cardiologia, são coisas que não deveriam ser feitas em hospital, mas sim em policlínicas, em atenção secundária. Muito menos dentro do HU, que deveria ser a ponta da ponta da estrutura. 

Boletim – A proposta de fundação estatal não põe em risco o atendimento pelo SUS, já que os hospitais terão que buscar outras fontes de receita?

Maninho – Os hospitais que já têm isso estabelecido ou semelhante a isso, como é o caso do Hospital das Clínicas de Porto Alegre ou do Instituto do Coração (InCor) de São Paulo, mantêm uma proporção de atendimento entre SUS e não-SUS. Tudo tem os dois lados da moeda. Agora, eles não desvirtuaram, você pode afirmar que são hospitais públicos de altíssima qualidade na América Latina inteira, são referências. Eles fazem esse atendimento. Pode ser desvirtuado sim, vai depender da política implementada. Minha proposta é que jamais se comece fazendo isso em todos os hospitais, que se faça um teste em algum local e vá aperfeiçoando o processo. Essa estrutura é possível? Sim. Vai resolver? Ninguém garante. 

Boletim – Por que então a proposta não serviria para o HU?

Maninho – Não é que não serviria. Dentro dos hospitais públicos de Santa Catarina, o HU é o melhor de todos. É o único, talvez, que garante o atendimento para todos, sem distinção ou discriminação. Por que mudar esse que está funcionando? É um risco que se corre. O problema não está nos HU, está nos outros hospitais públicos. A temeridade é mudar uma estrutura que já está funcionando. Vai desmanchar o que funciona para testar algo que não se sabe se vai funcionar. Nos hospitais do antigo Inamps, que já não existe mais, e hoje são geridos pelo Ministério da Saúde, o que é um equívoco dentro do pensamento do SUS, e a Prefeitura do Rio de Janeiro não consegue dar conta da administração, lá eles têm um problema gerencial e administrativo gravíssimo. Então que tentem lá, testem lá esse projeto. Agora, começar aqui, no HU, é completamente equivocado. 

Boletim – E nesse projeto de fundação estatal, como ficaria a questão do vínculo do HU com a universidade, com o ensino?

Maninho – É uma discussão muito longa, um tema muito complexo. Precisaria de outra entrevista, em outro dia. Se o hospital universitário é do MEC ou do Ministério da Saúde, é um debate longo e tem os dois lados da moeda. Do ponto de vista do sistema de saúde, outros países do mundo optaram pela manutenção dos HU dentro do Ministério da Saúde, mantendo parte da estrutura dentro do Ministério da Educação. Há uma fusão. Do ponto de vista da rede SUS tem sentido o HU estar ligado ao Ministério da Saúde, porque é a cabeça da rede, mas só pode ser feito se for garantida a prioridade do ensino, como foi feito em vários países. Não é um problema do Brasil. É que o Brasil agora está organizando seu sistema de saúde. Na Europa toda isso já aconteceu há 40 anos e a maioria dos países fez essa opção. Agora, sempre criando uma estrutura mista, híbrida, com uma vinculação administrativa ao Ministério da Saúde, mas com a coordenação dada pelo ensino. 

Boletim – Alguma outra questão para finalizar?

Maninho – Não sei se ficou muito claro. A Rede Sarah e o Hospital das Clínicas de Porto Alegre funcionam muito bem e contratam pela CLT. Não sou contra, a priori, se contratar pela CLT. Agora o fato de contratar pela CLT, por si só, não garante nada. Já o HU entrar nessa história não é por uma questão gerencial. Na minha avaliação, se deve a outros interesses, como se desvincular a folha de pessoal do orçamento do MEC. Não é porque o Sistema Único de Saúde está querendo se aperfeiçoar e está chamando o HU para entrar no projeto. 

Boletim – Há uma posição política por trás do projeto?

Maninho – O que eu ouço é que o MEC tem interesse em diminuir o número de funcionários da sua folha de pagamento e quer repassá-los para o Ministério da Saúde. Essa discussão é muito importante, é real, não se pode negar a priori. Mas qual o interesse? Melhorar a saúde e a educação? Não me parece. Parece-me que o interesse é administrativo-gerencial de se desfazer de um determinado número de funcionários. Aí não é admissível. Agora que essa discussão deve ser feita aberta e amplamente, com a participação da sociedade e não só com o interesse de corporações, esta ou aquela, penso que é importante. Mas nesse caso, é uma coisa interesseira, do administrador querer se desfazer de um número “x” de servidores.