O racismo no Brasil

A disputa sobre a constitucionalidade do regime de cotas segue seu ritmo enfadonho e a universidade não poderá aceitar outra decisão que não o respeito a sua autonomia. Contudo, a disputa judicial não faz mais do que ocultar o essencial: o racismo no Brasil se mantém sem um acerto de contas histórico, a despeito de qualquer possível manifestação dos tribunais. Ainda que isso possa irritar meus amigos defensores das cotas, há uma coincidência entre eles e seus adversários conservadores: ambos consolidam o mito da meritocracia como regra na universidade brasileira e na UFSC.

Em uma ou outra direção, a decisão do tribunal não alterará o ritmo da UFSC naquilo que interessa para este acerto de contas, pois a astúcia do pensamento dominante aliada à falta de ambição política dos defensores das cotas – um primo pobre das ações afirmativas, política originada nos Estados Unidos – completam um quadro em que o racismo, a despeito do estardalhaço, não é discutido e apenas tangencialmente combatido.

O Brasil é um país profundamente racista. Pouco importa a presença africana na cultura – artes, folclore, esporte, ciências, etc. – a questão é que o negro brasileiro freqüenta o porão da sociedade nacional. Ademais, os negros devem conviver com o mito freyriano da “democracia racial”, o que não é pouco para sacramentar sua subordinação e opressão classista e cultural.

A ilusão dos defensores das cotas como meio de combate ao racismo consiste na suposição de que, dada a desigualdade da sociedade brasileira, especialmente desigual para os afro-brasileiros, a postulação das cotas possui legitimidade intrínseca. Consciente ou não, eles importam a política de ação afirmativa aplicada nos Estados Unidos na década de setenta, tentando reproduzir no Brasil a mobilidade social que a sociologia dominante supõe existir no norte. De resto, esquecem que as cotas pertencem a histórica derrota dos revolucionários de 68 que se transmutou em “luta pelos direitos civis”, após os massacres dos Panteras Negras, do assassinato de Martin Luther King, e na derrota do movimento estudantil com a respectiva marcha através das instituições e o conseqüente abandono do horizonte utópico na política. A leitura liberal do conflito de 1968 consolidou o que conheceríamos anos depois como o miserável “politicamente correto” que os políticos vulgares no Brasil reproduziram como mercadoria de ocasião. Mas mesmo nos EUA, a resistência conservadora não foi pequena, pois, de posse da vitória estatal sobre o ímpeto da rebeldia de 68, as forças dominantes logo assinalaram o equívoco liberal em conceder espaço para as ações afirmativas: elas transgrediam o princípio sagrado da meritocracia, pilar ideológico de todo o sistema estadunidense. Daniel Bell, ainda em 1973, assinalou os perigos desta “reação populista” contra a exclusão nos Estados Unidos que, segundo ele, opunha indevidamente meritocracia à desigualdade. Desde então, os argumentos dos conservadores não se renovaram: sempre que os liberais invocam a inclusão social, os conservadores supõem a igualdade de oportunidades garantida pelo reconhecimento do mérito. Enfim, em tal mito (sociedade), os que possuem méritos, cedo ou tarde, serão inexoravelmente reconhecidos.

Ocorre que os Estados Unidos não é aqui. No Brasil, a estratificação de classes é ainda mais opressora do que no norte, e tanto o poder quanto o prestígio social está na cúspide da pirâmide, longe das mãos calejadas dos afro-brasileiros. Ademais, as condições materiais para a concessão social são bem menores na periferia, pois o sagrado princípio da austeridade fiscal diminui drasticamente a possibilidade da política públicad+ posto que as possibilidades de atender aos reclamos populares são reduzidas, não devemos esquecer que o monopólio estatal da violência assegura a paz social necessária ao ciclo dos negócios, sendo particularmente terrível para com os afro-brasileiros. Quem duvidar que observe a cor dominante do desumano sistema carcerário no país e dos milhares de homicídios anuais para compreender um pouco a perversa articulação entre classe e raça de nossa “questão social”.  As cotas não tocam na origem do problema, mas parecem contentar aqueles para quem é “preciso fazer alguma coisa já” e minimizar esta inaceitável desigualdade. 

Os conservadores reagem, condenam as cotas com argumentos inacreditáveis, mas levam vantagem porque a debilidade da razão garante a hegemonia nas idéias, pois no final das contas, tudo se resume ao fato de que aproveitam a defesa das cotas para reafirmar o caráter sagrado de seu postulado básico: a meritocracia não pode ser violada, como se ela realmente presidisse nossa sociedade e especialmente a universidade. Os defensores das cotas espetam os guardiões da ordem indicando que, na maioria dos casos, os negros que cursam medicina em outras universidades em que o sistema de cotas vigora, apresentam desempenho superior aos brancos. Revelam com o argumento que, dadas condições iguais, eles podem ser melhores que os brancos. Mas a força do exemplo não faz mais do que tripudiar contra um adversário débil, as “teorias científicas” do racismo típicas do século XIX que vaticinavam sobre a suposta inferioridade natural dos negros. O liberal inglês J.A Hobson, precursor dos estudos sobre o imperialismo, desmontou este “cientificismo” já em 1903, que desde então não se recuperou. Os avanços da biologia nas décadas posteriores liquidaram os conservadores mais resistentes, permanecendo apenas as peças de museu ao pé do canhão do velho argumento racista…

Na UFSC – ouso afirmar – a aprovação das cotas pelo Conselho Universitário foi presidida por um difuso sentimento de piedade aliado à convicção de que nossa universidade deveria acompanhar a modernidade das universidades estadunidenses. Não havia no campus, como ainda não há, consciência sobre a importância da luta contra o racismo. Nos últimos anos participei de alguns debates sobre a questão racial promovido pelos defensores das cotas oportunidade em que não deixei de manifestar meu ceticismo em relação às políticas de ação afirmativa. Na América Latina, a dominação européia não cessou e acompanho Bolívar Echeverría na percepção de que a solução desejada pela classe dominante aos indígenas é mesmo sua liquidação completa, seja pelo extermínio físico ou simplesmente pela incorporação ao padrão civilizatório europeu, ainda que periférico. A conquista é, em muitos sentidos, interminável! É difícil realizá-la em países como Bolívia, Equador, Guatemala, Peru, entre outros, pois os indígenas, ainda que tão subordinados quanto os negros no Brasil, são maioria e, recentemente, ergueram sua voz em rebeliões eficazes e abertas. Entre nós, é impossível uma solução final, como aquela em curso para os indígenas e, para a classe dominante brasileira, só resta então manter os negros na condição de subordinação em que se encontram. A adoção do regime de cotas enredou-se na argumentação meritocrática, o terreno fértil dos conservadores. Para superar esta hegemonia liberal do debate e da política pública, seria necessário que o protesto negro existisse e para tal, indispensável um movimento negro com intensa capacidade de mobilização, capaz de exibir sua rebeldia e apresentar sem rodeios suas reivindicações às portas do poder. Lamentavelmente, não é o que ocorre. Recordem, por exemplo, o número de pessoas presentes na oportunidade em que o Conselho Universitário decidiu adotar o regime de cotas. Não passavam de 30 adeptos esperando o resultado de uma reunião tão tranqüila que mais se assemelhava a ordinária prestação de contas da instituição…

Mas se por um lado a reunião do CUn que decidiu a adoção do sistema de cotas não mobilizou centenas de universitários, é verdade que a medida encontrou acolhida em determinadas organizações negras e em algumas lideranças que lograram hegemonia no debate sobre políticas públicas. Esta hegemonia foi resultado de muitos fatores, mas sem dúvida o investimento estadunidense dos anos oitenta, convidando lideranças afro-brasileiras para temporadas inteiras nos Estados Unidos, por meio de um generoso programa de bolsas, contribuiu para que o movimento negro isolasse o “radicalismo” do protesto negro em favor do sistema de ações afirmativas. A promessa de ascensão social no sistema capitalista superou o outrora combate ao sistema capitalista.

Ao contrário dos meus amigos defensores das cotas, não temo pelo seu futuro entre nós. A UFSC está obrigada a implementá-la. Nossa universidade deve criar um fundo especial para apoiar a “presença negra no mundo dos brancos”, caso contrário eles sairão pela mesma razão que entraram: a pobreza classista a que a maioria negra esta confinada. Uma recusa na garantia dos recursos sob qualquer argumento, desmoralizaria as decisões de nossa universidade não somente neste caso. Todos sabem que simplesmente não é possível permanecer cinco ou seis anos em um curso de odontologia ou medicina sem apoio econômico e financeiro.

Mas se não temo pelo futuro das cotas, estou convencido que é preciso colocar o racismo como objeto de estudo e reconhecimento na universidade, especialmente no currículo mínimo de todas as profissões. Oculta-lo, pelo conveniente elogio de nossa diversidade cultural que pouco seria sem a presença negra, ou simplesmente fazer de conta que ele não existe como na atualidade, é o caminho mais fácil de isolar ainda mais a universidade do drama racial brasileiro, mesmo aprovando as cotas. A democracia racial postulada por Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala” pode seguir gozando de prestígio intelectual entre nós, aliás, prestígio merecido como exemplo de estilo, de interesse pela sociedade nacional e pela descolonização do trabalho acadêmicod+ mas não podemos mais simplesmente ajoelhar no altar freyriano como se ele fosse capaz de minimizar o racismo entre nós, alimentando o mito da democracia racial. Os racistas “elegantes” também esgrimem argumentos presentes na obra de Freyre, não esqueçamos.  

É preciso, portanto, reconhecer que a controvérsia sobre o regime de cotas somente existe em função do profundo isolamento social das universidades brasileiras, reduzidas a tarefa de preparar a classe média para o promessa de ascensão social. Como justificar esta função classista senão pela defesa do mérito daqueles que usufruem o privilégio? O isolamento social da universidade brasileira alimentou a indiferença crônica dos universitários brasileiros em relação aos gravíssimos problemas da nação – entre estes o racismo – razão pela qual o tema esta ausente do cotidiano do universitário, especialmente entre os estudantes e professores. A aprovação das cotas, por mais que alguns conservadores se escandalizem, é útil também para eles que querem manter a universidade na redoma da simulação acadêmica e da reprodução colonial do saber eurocêntrico, pois sabemos que não se pode combater o racismo sem tocar nas estruturas econômicas, políticas, sociais e culturais que lhe sustentam. A controvérsia sobre o regime de cotas seria uma oportunidade intelectual e política considerável na luta contra o racismo, mas a julgar pelo clima dominante, sou novamente cético sobre as possibilidades do processo de descolonização intelectual ir até o fundo e o fim. As limitações da proposta são tantas que não justificam otimismo algum. Afinal, se é para valer, porque não estender a proposta de cotas também para a pós-graduação? Não seria adequado reservar vagas nos concursos públicos também para os professores afro-brasileiros?

O mito da democracia racial é uma construção política do racismo brasileiro. Ela buscou legitimidade intelectual na obra de Gilberto Freyre, da qual fez uma cômoda leitura. Mas a sociologia de Freyre, tão fecunda em muitos aspectos, terminou por consolidar o racismo cordial entre nós, cuja versão mais violenta é o suposto de que o Brasil não tem racismo, pois aqui não se chegou ao apartheid da África do Sul ou as leis segregacionistas verificadas nos Estados Unidos. Foi Florestan Fernandes quem articulou melhor resposta ao drama racial brasileiro, ao indicar que o mito da democracia racial era antes de tudo um mito cruel: o nexo entre classe e raça condenou milhões de afro-brasileiros a subalternidade programada de nossas “transições indolores”, e entre estas, aquela que liberou o escravo e criou a força de trabalho livre. 

Não obstante a importância da perspectiva de Florestan Fernandes – para quem sem a revolução democrática arrastaríamos o racismo como um componente da ordem burguesa enquanto esta durar – ele também foi tão esquecido quanto o combate classista contra o racismo, e o pragmatismo político consolidou as ações afirmativas. Ainda estamos longe de uma revolução democrática, o único caminho para redimir os afro-brasileiros da subalternidade programada. Neste contexto, como se opor a qualquer modalidade de ação afirmativa? Contudo, é uma perigosa ilusão supor que o regime de cotas pode avançar na luta pelo fim da subalternidade programada se, em sua essência, ela mesma é um componente da mobilidade social, do princípio meritocrático e, em conseqüência, do cruel mito da democracia racial.