Irmãs siamesas?

“Pouco importa se o gato é branco ou preto, contanto que pegue os ratos”

(Máxima de Deng Xiaoping, que, ao conduzir as reformas que impulsionaram a China, enfrentou o conservadorismo esquerdista).

Uma regeneração da vida política da Apufsc está em curso.

Tínhamos um sindicato de costas para o cotidiano da UFSC (considerado “comezinho” por diretorias passadas), um sindicato sem professores (AGs com presença menor que o número de diretores, muitos dos quais, aliás, sequer aparecem na sede).

Esgotou-se uma prática sindical fundada na divisão de trabalho onde grupos de esquerda cuidavam do sindicato, e os demais de suas pesquisas. Ora: um sindicato docente universitário não pode estar divorciado das estruturas produtoras do saber científico. Caso contrário, ele apenas legitimará um corporativismo burocrático e parasitário, um carreirismo sindical desconectado da vida acadêmica. Uma Apufsc conduzida por poucos que se profissionalizaram e viraram lideranças nacionais, porém dissociadas das suas bases, hoje se revela contra-produtiva e ineficaz. O preço a pagar é grande.

Estas “lideranças”, ao considerarem que os colegas estão “errados”, combatem a própria categoria que deveriam representar, não buscam dialogar com seus pares, gerando as conhecidas práticas sectárias do grupo hegemônico “Andes AD” dentro do movimento docente (MD). O resultado é um MD travado, agonizante, e uma vanguarda sem retaguarda que, fechada sobre si mesma, distanciada das bases e fora da realidade acadêmica, não é vanguarda. É uma minoria encastelada, refugiada, com medo dos colegas, que faz da política um jogo de dissimulação, de espertezas e armadilhas onde tudo vale para a manutenção do poder.

A “refundação sindical” é uma exigência do tempo presente, é uma resposta à profunda crise que o sindicalismo atravessa em todo planeta. A mudança é inevitável, responde, especialmente, à gigantesca crise do sindicalismo universitário (Andes). Não podemos fazer como a avestruz, ignorarmos a profunda mutação societária, geracional. A acelerada transformação que vivemos socialmente, agudizada dentro das universidades onde a interação virtual, por exemplo, é uma realidade consolidada, exige que reformemos o sindicato, adequando-o aos tempos atuais em que a solidariedade no ambiente de trabalho se reconfigura e fragiliza. A vitalidade/sobrevivência do sindicalismo se medirá pela capacidade que tivermos de renová-lo. Mudanças ocorrem não apenas na UFSC: Outras ADs há muito tempo convivem com quoruns mínimos para as assembléias, ou mesmo deliberam digitalmente.

Era preciso resgatar a Apufsc para seus associados, e isto está feito através do processo de reforma do Regimento e de revitalização do Conselho de Representantes. Na Apufsc os que procuraram obstaculizar este processo se apresentam como de esquerda… Eles lamentam que “na aventura de mudar o Regimento” fiquei de “mãos dadas” com “despolitizados” que buscam “o fim da política no sindicato”. Assim, ao fazer uma separação simplista entre bandidos e mocinhos, para estigmatizar e dificultar a renovação da Apufsc, ficam cegos para ver que a mudança do regimento advém da base e relegitimará a vida sindical, possibilitará construir um sindicato deveras forte.

Lamentável seria eu se eu ficasse de mãos dadas com aqueles que têm dois pesos, duas medidas, presos duma visão maniqueísta do mundo, que apenas buscam o isolamento do poder para preservar sua própria posição, discriminam preconceituosa e ideologicamente os colegas.

Esta divisão primária entre “esquerda” como “mocinha”, e direita como “bandida” é incabível e religiosa. A vida política recente no sindicato mostra isto claramente: nos colegas “despolitizados” também há grandeza, disponibilidade, renovação. Por outro lado, no seio da “vanguarda” encontramos práticas antidemocráticas e deletérias. Antes que digam que reproduzo o condenável maniqueísmo, reconheço que somos todos humanos e, com nossas emoções e preconceitos, todos alimentamos rancores e erros.

Mas, não se trata de esquerda contra direita. Trata-se de renovar sem jogar fora o bebê com a água do banho, sem desprezar o acúmulo das últimas décadas. Muitos colegas da esquerda, que tem muitos matizes, estão nesta construção. Também entre a “direita” que está nesta “aventura”, há muitas diferenças. Há que reconhecer a diversidade da nossa categoria. Não somos nem agimos monoliticamente.

O mundo multipolar e interdependente tornou arcaicos muitos dos clássicos divisionismos. Especialmente do ponto de vista sindical, as posições ideológicas esquerda e direita não devem ser geradoras primárias de antagonismos, mas podem ser complementares. Metaforicamente, são como irmãs siamesas que coexistem de forma tensa, mas criativa, no mesmo corpo. O acirramento desta clivagem ideológica tem esterilizado a construção de um MD forte o suficiente para garantir e ampliar direitos historicamente conquistados. Esta clivagem não é adequada para equacionar de forma correta a vida sindical, muito menos para expressar a riqueza do universo político universitário. Ora: sindicato não é partido político, nem deve ser aparelhado por nenhum grupo político. Sindicato só faz sentido se tiver respaldo e for representativo da maioria, sua força advém do grau de unidade que consegue alcançar.

A forma como hoje o trabalho é organizado gera uma débil solidariedade. Nosso calcanhar de Aquiles é não nos vermos unidos enquanto categoria, não perceber que todos compartilhamos o mesmo destino comum da instituição universitária. A prática sindical deveria ser corretiva dessa desagregação que nos divide e fragiliza. Do ponto de vista corporativo, estamos todos no mesmo campo, o campo do sindicato, pois todos buscam melhorar nossas condições de trabalho e melhores salários. Mas, nossa unidade nunca é uniforme. A universidade, ao respirar diversidade, insiste em nos unir. O sindicato deve ser organizador dessa vocação comum, e não um divisor de águas.

Ainda estamos aprendendo a lidar com a contradição. Diante dos inevitáveis antagonismos e disputas inerentes a qualquer espaço coletivo, o desafio é construir uma prática política que trate o outro não como inimigo a ser destruído, mas que valorize a diferença, a participação, o diálogo, gerando a imprescindível unidade da classe.

Defendo dentro da Apufsc uma aliança com aqueles que têm, em primeiro lugar, integridade moral para construir um MD plural, democrático e eficaz na defesa de nossos direitos coletivos. Não cabe transpor sectariamente para a vida sindical posições políticas/ideológicas, dicotomizando e combatendo colegas de trabalho dentro do espaço do nosso sindicato comum, como se inimigos fossem. Nossos parceiros são os que ecoam a verdade, único caminho para a liberdade e aperfeiçoamento humano. Se desdenharmos do compromisso com a verdade e a ética, a militância será puramente cosmética, não será portadora de esperanças, de sonhos.

1 Agradeço as contribuições dos colegas Remy Fontana, Raul Burgos, Henrique Finco, Gerônimo Machado e Marcos Aurélio da Silva para este artigo, cujos limites, evidentemente, são todos meus.