O silêncio dos inocentes

I

Há muito tempo, tem mais de 20 anos, o general Dilermando Gomes Monteiro participava de um Roda Viva da TV Cultura. Três outros convidados faziam as vezes de entrevistadores, dentre os quais a atriz Dina Sfat. Todos falavam, perguntavam sequiosos por encurralar o dito general sob cuja tutela foram assassinados o operário Manuel Fiel Filho e o jornalista Vladimir Herzog, no espaço de meses, nas dependências do II Batalhão do Exército, no Ibirapuera, São Paulo. O programa se aproximava do final e Dina Sfat calada. Dina Sfat em silêncio. Vai que o condutor da entrevista, não me lembro mais quem, provoca a atriz: “E você, Dina, não tem nada a perguntar ao general? Não tem nada a dizer?”

Então, Dina entrou em cena: os olhos castanhos redondos, a boca carnuda entreaberta, o sorriso irônico sobressaindo em seu rosto límpido e pronto para a expressão tão marcante quanto todas as vezes em que ela entrava em cena, fosse no teatro, nas telas de cinema ou tevê. Para que o telespectador lesse sensações. Era isto: Dina, em cena, criava atmosfera. Então exprimiu surpresa, admiração, temor… Mas também ironia. O que ela respondeu: “Eu tenho medo do senhor. O senhor, general, me inspira medo!” Dina Sfat deixava claro que nada há a se perguntar a quem faz parte de golpes, de atos reacionários.

II

Semana passada assisti a uma série de filmes de Glauber Rocha, seus primeiros documentários que datam de 1959 a 1968. Um deles chama-se exatamente 1968. As imagens foram restauradas pelo MIS de São Paulo, mas o som não deu para salvar. Era um filme mudo. Trata-se da filmagem de uma concentração monstro, organizada pela UNE, em resposta ao assassinato pelos esbirros da ditadura de um estudante às portas do Calabouço, restaurante da entidade estudantil no Rio de Janeiro. Vêm jovens de todos os lados, portando bandeiras com palavras de ordem até formar um oceano de gente em torno de um palanque improvisado de onde discursavam os líderes estudantis: Wladimir Palmeira, Luís Travassos, Zé Dirceu. Todos já mortos. Inclusive aquele Zé Dirceu.

Mas o filme causou angústia. Na perda do som pelos estragos irrecuperáveis, ficou a desagradável sensação de que o filme de Glauber era premonitório face ao silêncio das gerações vindouras. Aquela fora brutalmente silenciadad+ a atual navega nas fibras óticas dos emeios em correntes e se compraz na solidão assessorada pelos múltiplos recursos disponíveis nos computadores.

III

Semana da Pátria. Na virada para o 7 de Setembro reuniram-se em São Paulo representantes de todas as ADs, convocados pela atual diretoria do Andes, atônita diante do golpe iminente tramado nos gabinetes  de Brasília. Quem diria?! De repente, um sindicato com relevante histórico de lutas se vê traído e acossado. Tantas conquistas em quase 30 anos de atuação guerreira no interesse dos professores universitários, do ensino público e gratuito, entre tantas outras metas não foram suficientes para que se garantisse como canal de oposição. Hoje não temos mais oposição. Ficamos órfãos daquele PT que ajudamos a alçar vôo. Daquele partido que erradicaria todo peleguismo e, por isso, gerou a CUT. Daquele partido que, com raras exceções, optou pela cartilha dessa coisa, hoje DEM, antes PFL, e desde sempre Arena.

E foi então que muita gente adormentou-se. A título de exemplificação, me vejo obrigado a lembrar de recente episódio.

“Eu estava adormecida!” clamou uma certa professora empinada em seu discurso em pró da URP em memorável linchamento ao advogado da Apufsc. Era preciso, naquela assembléia de julho, um bode expiatório para pagar o mico de uma URP que se esvaiu por conta de ex-reitores sem coragem, de legisladores interessados em circo e lobbies, de uma Justiça que julga feito biruta de aeroporto. Porém, muito por culpa dos quase dois mil professores diretamente interessados. Afinal, desde abril de 2007, quando uma diminuta comissão se formou e da qual eu fazia parte, fomos de Herodes a Pilatos atrás de um resultado que poderia ser útil, inclusive, aos desurpados. Distribuí convites e convocações de porta em porta pelos corredores dos departamentosd+ chamamos os aposentados. Mas a diminuta Comissão acabava sempre sozinha, açodando de vereadores a deputados federais. Quixotescos – era o que parecíamos – pois não foram poucos os deputados que se riram de nós: “Vocês são quase dois mil e aparecem não mais do que cinco ou seis para fazer barulho? Nós queremos é platéia, é massa, se não a coisa não anda.”

Um juiz da vara da Justiça do Trabalho chegou a nos dizer que se quiséssemos alguma coisa que fizéssemos lobby. E onde estavam os nossos colegas? Adormecidos. Nosso presidente, o da Apufsc, depois de rápido périplo a Brasília, resolveu envolver-se com o caso estridente da fundação do setor CTC, e depois com os calorosos debates em torno de planos de saúde em prol da Unimed. Mais de um ano se passou e o presidente, atritado com a Diretoria, se apóia no recém restaurado Conselho de Representantes e dá novo impulso à causa perdida, juntando mais de uma centena (foi bonito!) de adormecidos para referendar os vultuosos gastos com um laudo jurídico sobre o longo processo e com a nova banca de advogados.

Portanto, entramos também nós no sistema firmado e escancarado desde a explosão nacional do mensalão: em se pagando tudo dá. Dá?

E lá estava a atual diretoria do Andes e todas as ADs (menos a da Bahia!) espremidas quase trezentas pessoas no salão de um hotel situado em plena cracolândia, tendo em seu entorno dezenas daqueles personagens de corpos sujos, olhos esbugalhados, seminus e que comem luz, como na canção de Chico. Lá estávamos todos relatando problemas setoriais, cuja tônica era a denúncia sobre a desconstrução dos sindicatos. Via MPOG, o Governo vem desorientando as instituições, pois a cada uma, um ordenamento diferenciado. Constatações e denúncias muitas: de que a MP 431 desrespeita os aposentados e traz erros cruciaisd+ de que passado um mês, caiu a ficha do engodo que representou o aumento salariald+ de que os professores associados ficaram felizes, pois nunca viram tanto aumentod+ de que o Proifes é do bem e o Andes do mal por não ter assinado a acomodação dos diversos níveis de aumento para o professoradod+ de que o dinheiro para construções e melhorias têm vindo de emendas parlamentares e não do Reunid+ de que os entraves para a obtenção de registro vem arrasando com o caixa das ADs, uma vez que não podem aceitar novas consignações.

Sindicatos empobrecidos, sindicatos dependentes: o peleguismo em marcha.

IV

E surge o Proifes com a chancela da CUT.

Estamos órfãos de opositores, de antagonistas. O que ajudamos a criar nos idos dos anos 70-80, hoje aplica as regras economicistas daqueles governos antes combatidos.

Vocês querem um sindicato que se faça porta-voz do silêncio, um sindicato feito de fibras óticas, de abaixo-assinados, de eficientes 15 minutos corridos em silêncio, na surdina? 91 personagens munidos de procuração aprovam sem ruído o prócer sindical facilmente acomodado às vantagens pessoais do adesismo. Era uma assembléia de professores, mas fomos impedidos de adentrar à protegida sala onde o golpe estava armado. Entre 15h08 e 15h15, da véspera do Dia da Pátria, 91 personagens criaram um sindicato, um regimento interno e um quadro completo de diretoria!

Não. Não tem mais barulho, não tem mais discussão. Chega de greves (chega mesmo!). Mas daí a ficar cada um em seu casulo, cuidando de seus projetos, esperando que um novo sindicato vá prover a sua velhice…!

Cuidado! A tentativa de um novo sindicato pode estar camuflada de lobo em pelo de carneiro. E se havemos de nos surpreender com virulência de um governo que não admite contrariedade ou cobrança, lembremos do sorriso irônico e dos olhos aguçados de Dina Sfat. Se havemos de nos angustiar com o silêncio preconizado no filme de Glauber Rocha, lembremos que nem todos os daquela geração perderam o viço da juventude e, por isso mesmo, buscam a parceria com a nova geração de colegas que faz da UFSC uma universidade de excelência. Há, sim, que buscá-la e quebrar-lhe o encantamento com um dito dos mais antigos. Aquele que conta assim: “Juventude sem espírito de rebeldia é sinal precoce de servidão”.

V

Por fim, cumpre lembrar de ser solidário, não importando qual seja a situação. Até mesmo aquela que envolve uma carona entre colegas, para que ninguém sobre pelo caminho numa noite fria de domingo…