Desigualdade de renda trava o IDH do Brasil

1% mais rico da população concentra 28,3% da renda do país; O IDH ajustado à desigualdade é de 0,574, bem abaixo do índice geral de 0,761

A paralisia nos indicadores de educação e o aprofundamento da desigualdade e da pobreza explicam a estagnação do Brasil mostrada pelo Relatório do Desenvolvimento Humano 2019 , elaborado pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), com dados do ano passado. Mais que isso: acendem uma luz vermelha quanto a avanços futuros nos aspectos social e econômico do país, podendo resultar em graves perdas em produtividade . É inversão de tendência dos últimos anos, quando o Brasil vinha apresentando melhora nesses indicadores.

No ano passado, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) brasileiro, que mede a qualidade de vida nos países para além do PIB, considerando indicadores de saúde, educação e renda, ficou em 0,761, praticamente estável frente ao 0,760 de 2017. Ainda assim, o Brasil caiu uma posição no ranking dos 189 países analisados, figurando na 79ª colocação.

“A concentração de renda é brutal”

O economista Flavio Comim, atualmente professor nas Universidades de Ramon Llull (Barcelona) e de Cambridge, destaca que existe uma “singularidade dramática” do ponto de vista da desigualdade no Brasil. Os dados do Pnud mostram que a concentração de renda do 1% mais rico abocanha 28,3% da renda do país, só perdendo para o Qatar. Enquanto os 10% mais ricos ficam com 41,9%.

“A concentração de renda é brutal. Desde o início dos anos 2000, quase 30% da renda do país vai para esse 1%, que vai acumulando riqueza. O índice de Gini (que mede a desigualdade de renda) subiu dois pontos. Significa que as classes médias estão encolhendo. Em paralelo, toda a educação está desprestigiada. Do lado humano, estamos assinando um contrato com o atraso”, avalia ele, que já foi responsável pela divulgação dos dados do IDH no Brasil.

O IDH ajustado à desigualdade do Brasil é de 0,574, bem abaixo do índice geral de 0,761. Para se entender o impacto do indicador, ele derruba a classificação do país no ranking geral em 23 posições, a maior queda registrada dentre os 150 países avaliados no corte que considera a desigualdade.

“O IDH ajustado à desigualdade mostra uma involução. Não estamos apenas pior na foto. É como se existisse um filme rodando para trás”.

Caminhar para trás no fronte social, pontua o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social, põe em risco as perspectivas futuras do país, mesmo com avanço na economia. Os avanços conquistados até o início da crise econômica, continua ele, vinham colaborando para preencher uma lacuna histórica. O freio mostrado agora afasta o Brasil dessa trajetória.

“O IDH ajustado à desigualdade é uma fotografia que está mostrando um Brasil pior. O que o relatório (do Pnud) mostra agora é uma involução. E uma involução ainda maior para os mais pobres. Não estamos apenas pior na foto. É como se existisse um filme rodando para trás”, compara Neri.

Entre 2014 e 2019, os 50% mais pobres no Brasil perderam 19% da renda. Enquanto a média total da população perdeu 3%. Ou seja, a recessão dos mais pobres foi seis vezes pior que a da média.

O economista e sociólogo Marcelo Medeiros, professor visitante na Universidade de Princeton (EUA), argumenta que faltou uma saída da recessão que ajudasse os mais pobres. O pouco crescimento que o Brasil vem registrando, sublinha ele, está deixando a população de mais baixa renda para trás:

“A desigualdade está se aprofundando. Nós não abrimos direito a rede de proteção social. Ao longo deste ano, a desigualdade e a pobreza seguiram aumentando. A situação, neste momento, talvez seja ainda pior que a retratada pelo índice divulgado agora, que considera dados de 2018.”

Na educação, o relatório mostra estagnação nos dois indicadores utilizados pelo relatório do IDH. O primeiro deles é o que considera o número de anos esperado que as pessoas fiquem na escola, estacionado em 15,4 desde 2016. Entre 1990 e 2015, esse dado saltou de 12,2 para 15,3. Já a média de anos de estudo, que compila os anos de estudo da população com 25 anos de idade ou mais, repetiu os 7,8 anos de 2017. Ou seja, abaixo dos nove anos de ensino fundamental, sem contar a educação infantil.

“Se a educação estagnou, é muito preocupante. Porque ela é a principal política social e econômica, com reflexos também em saúde e longevidade. Desde a democratização, o país deu um salto em educação, mas com problemas em qualidade. Existe um déficit no aprendizado que compromete a produtividade” destaca Marcelo Neri.

Há uma década, o Brasil aparece estagnado com os piores níveis de aprendizado avaliados pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), coordenado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A pesquisa, realizada a cada três anos, avalia o conhecimento de estudantes de 15 e 16 anos, nas redes pública e privada de ensino, em Leitura, Matemática e Ciências. No resultado do Pisa de 2018, divulgado na semana passada, 43% dos participantes brasileiros não aprenderam o mínimo nessas três áreas.

A educação é chave para definir a qualidade da mão de obra que chegará ao mercado no trabalho brasileiro no futuro, impactando diretamente na produtividade do país.

Um dos alertas feitos pelo Pnud é que, embora ainda existam muitas desigualdades originárias do século passado não resolvidas, surge uma nova fornada de “graves desigualdades no desenvolvimento humano”. As mudanças climáticas e as mudanças tecnológicas são os dois principais fatores puxando esses novos desafios.

De novo, os especialistas argumentam que a educação e o combate à desigualdade são fundamentais para avançar.

“Estamos no meio de uma corrida educacional global. Não se trata apenas de melhorar a educação no Brasil, mas de acompanhar a corrida internacional na educação. No longo prazo, o modelo de trabalho vai valorizar cada vez mais a flexibilidade para incorporar mudanças, e menos a habilidade técnica. Agora, estamos preparando quem vai para o mercado em 30 anos. Vamos pagar caro pelo que não estamos fazendo agora”, destaca Marcelo Medeiros.

Comim frisa que é preciso focar em políticas compensatórias para pessoas de classe média e mais pobres. Ele diz que trabalhar apenas pela promoção de reformas estruturais não vai resolver o problema do país. É preciso atacar as desigualdades: social, econômica, de gênero e racial.

“Os dados do IDH precisam puxar uma reflexão. Ou vamos perder, como já estamos perdendo, capital humano no Brasil. Se cresce a desigualdade e perdemos em educação, vamos entrar no pior uso da inteligência artificial, que é a de substituir a mão de obra por máquinas e tecnologia. Estamos aprofundando as desigualdades e entrando no mundo da polarização social, econômica e, com isso, também política, o que dificulta muito os avanços”, argumenta o economista.

Leia na íntegra: O Globo