Não há plano B para o distanciamento social, diz David Uip

Para infectologista, doença chegou ao Brasil mais tarde e por isso número de infectados ainda está em alta

Com a experiência de quem trabalhou no sistema público de saúde por mais de 40 anos, o médico infectologista David Uip, coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus de São Paulo, afirmou mais de uma vez, durante a entrevista que concedeu ao Valor na noite de sexta-feira, que não existe por ora plano B para o enfrentamento à maior pandemia da história contemporânea. “Não temos um plano B neste momento”, disse o médico de 68 anos. “O plano B é o A”, reiterou ele, após atender o último paciente com hora marcada em seu consultório, na zona sul de São Paulo.

Quando fala em plano A, David Uip se refere às medidas de distanciamento social adotadas pelo governo de São Paulo há cerca de 40 dias via decreto para tentar achatar a curva de transmissão do novo coronavírus e abrandar seu pico, evitando dessa forma o colapso no atendimento nos sistemas de saúde, como já ocorre em algumas localidades do país. “Você não tem vacina e não tem medicamento. O que podemos fazer é o distanciamento social”, observou.

Questionado sobre a razão de o platô da pandemia no país, inicialmente previsto para ocorrer entre abril e maio, ter previsão agora para ocorrer em junho e se isso configura perfil diferente em relação ao resto do mundo, David Uip refuta a ideia. “Temos um perfil exatamente igual, apenas começamos depois”, argumentou o médico, acrescentando que considera o redesenho da curva um dado positivo, já que o país, em tese, ganha em tempo para tomar medidas preventivas e equipar hospitais.

O infectologista não tem ilusões quanto às perspectivas de uma imunização entrar em campo – possibilidade que, de acordo com ele, levará no mínimo um ano. Segundo Uip, a covid-19 proporciona aprendizado diário, sendo um teste de paciência para quem busca soluções imediatas. “Há respostas que não existem ainda.”

As medidas de distanciamento social estão em reavaliação e detalhes do plano de saída do isolamento serão divulgados no próximo dia 8. A ideia do governo estadual é de um possível relaxamento que permita às pessoas retomar gradualmente a circulação e o funcionamento de alguns segmentos.

Mas tudo pode ser revisto, condicionou Uip, que contraiu covid-19, foi internado e, mesmo sendo médico experiente, não tem ideia sobre como foi infectado. “Estamos muito expostos”, observou ele, que divide seu tempo também com a reitoria do Centro Universitário Saúde ABC, o consultório nos Jardins e a coordenação do Centro de Infectologia do Hospital Sírio Libanês. Segundo Uip, uma taxa de isolamento abaixo de 50% é obstáculo à abertura da economia. A seguir, os principais pontos da entrevista de Uip ao Valor.

Por que o avanço da covid-19 vem se dando de forma diferente no Brasil em relação aos primeiros países em que o novo coronavírus se instalou?

Eu não acho isso. Temos um perfil exatamente igual, apenas começamos depois. Os primeiros casos na China chamaram a atenção, mas do ponto de vista da informação tudo começou a se avolumar quando começaram a aparecer casos no Irã e em países da Europa como Espanha. No Brasil, estamos um mês atrás desses países e duas a três semanas atrás do Estados Unidos. Mas o perfil é o mesmo: 80% dos pacientes com poucos sintomas ou nenhum, 20% precisando recorrer ao sistema de saúde, dos quais 5% necessitam de UTIs. Então o perfil não mudou. Só entendo que estamos atrás de outros países do ponto de vista de início da pandemia.

Por que então o prazo para a curva de transmissão atingir o pico se estendeu?

São Paulo tomou atitudes rápidas, especialmente do ponto de vista de distanciamento social. O objetivo era tentar achatar a curva e evitar um pico rápido e muito alto. Então aquilo que se previa para abril não aconteceu. Estamos quase em maio, com o número de casos aumentando, e tentando evitar um pico alto. Para usar expressão que costumo citar, é comparar uma montanha e o Everest. As medidas de distanciamento e outras que o Estado de São Paulo tomou foram adequadas e tomadas no tempo certo.

Na avaliação do sr., qual o impacto dessa reconfiguração?

Não vejo como má notícia o fato de o pico se prolongar. Isso deu um tempo para o sistema de saúde ir se organizando. Ninguém sabe se o sistema vai dar certo, se será suficiente. Mas o Estado de São Paulo tem uma saúde robusta, no âmbito público e no privado. As decisões foram acertadas e culminaram com uma situação de alargamento da curva, na tentativa de diminuir a intensidade do pico. Isso tudo tem a ver com adesão da população. Taxa de 50% é uma adesão importante. O Estado não parou e nunca houve confinamento total. É um bom número, mas não pode ser abaixo disso.

O vírus pode infectar qualquer um em qualquer idade. Doença grave pode ocorrer a qualquer um em qualquer idade”

Nos últimos dias, tivemos queda na taxa de isolamento considerada minimamente ideal. Quais as implicações disso neste momento?

Os números dos últimos dias são extremamente preocupantes. Quem observa as ruas vê que aumentou o número de pessoas e carros circulando, e isso preocupa muito. Essa regressão não pode acontecer, e eu sei o quanto é difícil ficar de quarentena. Só que não tem plano B neste momento. Não tem vacina nem medicamento. O que podemos fazer é o distanciamento social.

Quando diz que não sabe se o sistema vai dar conta, em que medida vê isso?

Estamos vendo o que está acontecendo em outros Estados. São Paulo se preparou e tem uma estrutura sólida. Temos 103 hospitais estaduais. Se incluirmos filantrópicos e privados, são mais de 600. Mas tudo depende muito do que acontecer na sequência. São Paulo aumentou muito os seus leitos de UTI e continua a aumentar. O município de São Paulo, que está indo espetacularmente bem ao tomar providências, já está pressionado, a região metropolitana está pressionada. Temos média de ocupação de leitos no Estado de 60%. Alguns hospitais importantes na região metropolitana estão com mais de 90%.

E o que podemos esperar nas próximas semanas?

Temos que ser muito cuidadosos com previsões. Você prevê, cria cenários, e a parte executiva, que é a Secretaria de Estado, toma providências. Temos hoje um aumento do número de leitos de UTI acima de 50% do que tínhamos, como prevíamos desde o começo. Esperemos que seja suficiente, mas é o dia a dia que vai dizer.

Há certa imprevisibilidade em relação aos cenários?

Trabalhamos com curvas, com georreferenciamento, como monitoramento inteligente da movimentação, modelos epidemiológicos, matemáticos, tudo isso está sendo feito. Mas tudo depende ainda de como a população se comporta. Não temos dúvidas em afirmar que isolamento acima de 50% achata a curva, e o objetivo é sempre alcançar mais.

Então a resposta da população será fundamental para o governo rever o decreto de isolamento, relaxando ou não?

São Paulo precisava ter um plano, e isso é bom. O mundo inteiro tem planos, a Alemanha tem; França, Reino Unido, Espanha têm planos. A implementação é que depende de algumas coisas. Primeiramente, que se tenha acompanhamento por testes através de modelos epidemiológicos. Em segundo lugar, que você saiba que o sistema de saúde está pronto para o que vier. Terceiro, que haja estabilidade na diminuição da curva de ascensão. Quarto, que haja continuidade dos planos de distanciamento. Então são fatores que vão implicar sobre o que o centro de referência vai sugerir aos secretários de Estado e ao governador. A decisão é do governador. Cabe a nós criarmos modelos e cenários, oferecendo a melhor informação.

Leia mais: Valor Econômico