Sem vacina, mundo pode ter constante “abre-e-fecha”

O biólogo Atila Iamarino acredita que enquanto não houver como deter a pandemia, os países poderão viver em estado alternado de emergência, abrindo e fechando fronteiras e atividades

Pode ser que o mundo não viva em estado permanente de emergência em função da covid-19 enquanto não houver vacina. Mas, provavelmente, a vida será interrompida por estados alternados, em que países abrem e fecham atividades e fronteiras conforme enfrentam novos ciclos de contaminação. Não só. O sistema de saúde mundial tem que se preparar: Há vírus batendo na porta e tentando se espalhar pela humanidade”.

O cenário é do biólogo Atila Iamarino, doutor em virologia pela USP e pós-doutorado em Yale. Em live no domingo, quando o Brasil ultrapassava os 100 mil casos de covid-19 e tinha mais de 7 mil mortes (“quase o dobro da semana passada”, alerta, “e que devem ser muito mais na verdade”), mostrou que o coronavírus é 15 vezes mais letal que uma gripe comum.

Embora o Brasil tenha começado a enfrentar a crise adotando cedo medidas de isolamento social, agora, relaxando a quarentena, está em forte ritmo de crescimento. O número de casos pode dobrar a cada cinco dias. “O Brasil ruma para ser líder em casos e óbitos”.

O país testou muito pouco – 339 mil testes até hoje. “Deveríamos estar fazendo 300 mil testes por dia” se o que se quer é começar a reabrir a economia com segurança. Usando o modelo da disseminação do novo coronavírus feito pelo Imperial College, Iamarino diz que o Brasil corre o risco de ter mais de um milhão de pessoas morrendo da doença. Cita estudos de vários institutos que indicam que a subnotificação aqui sugere que o número de casos é 4 a 12 vezes maior. Ainda, sem rastrear os contatos de quem testa positivo, resume: “Não sabemos o que está acontecendo no Brasil. Estamos tropeçando em corpos”.

O pesquisador cita sistemas de saúde em colapso no Amazonas, Ceará, Rio de Janeiro, Pernambuco. “Já deveriam estar pensando no ‘lockdown’: todos trancados em casa”, diz. A pandemia, lembra, avança pelas cidades do interior e pelo semiárido nordestino, com sistemas de saúde precários.

Para o divulgador científico campeão de seguidores nas mídias sociais, ciência não tem ideologia, mas o uso que se faz da informação, sim. “Tem quem acredite que a covid-19 não mata, que as pessoas morrem de outros problemas e só tinham o vírus. Médicos falam isso. São movidos por uma ideologia tão forte que faz com que questionem a realidade.”

Esta é a primeira vez na história que a humanidade tem poder de decisão sobre como enfrentar uma pandemia. “Mas qualquer saída depende tanto das pessoas quanto da ciência”, alerta, lembrando que somente o Estado é capaz de falar com parcelas menos educadas da população. A seguir, trechos da entrevista que concedeu ao Valor:

Este parece ser o primeiro ano do resto das nossas vidas. Como sairemos desta pandemia?

Podemos ter duas saídas, não sei dizer qual é a mais provável. Perdemos o caminho de o mundo se juntar, entrar em “lockdown”, impedir a circulação da covid-19 e acabar com a doença antes dela se espalhar. Nem a China conseguiu fazer isso embora tenha contido surtos como a Sars em 2003 e os de gripe aviária. O caminho mais curto é o do desenvolvimento de uma vacina eficaz em prazo próximo. Nesse caso, só teremos que manter a vida em suspenso até que seja produzida em doses suficientes. Um prazo realista seria o final de 2021.

Tanto tempo?

Mesmo se tivermos uma vacina eficiente desenvolvida antes, há muitas etapas de testes, produção e compartilhamento de 7 bilhões de doses pelo mundo. Algo que a humanidade nunca fez antes. Vacina da gripe talvez seja um bilhão de doses ao ano.

E o outro cenário?

É arriscado dar prazos porque há muitas variáveis, desde a capacidade hospitalar mundial ao desenvolvimento de tratamentos, mas seriam vários anos. Passaremos dois anos ou mais alternando ciclos de abertura e fechamento de cada país, para controlarmos o número de pessoas que precisam de atendimento hospitalar.

No Brasil, os cortes no orçamento da ciência vêm de cinco anos, ficando piores ano a ano. Agora isso faz falta”.

O que essa monstruosa crise muda?

Muda a qualidade do sistema de saúde mundial. Já tivemos pandemias sérias que foram contidas antes de virar problema global. A Sars em 2003 atingiu China, Vietnã, Canadá, Estados Unidos e Cingapura, países mais bem preparados agora e que estão reagindo bem à covid-19. Os EUA são exceção bizarra: um dos países mais preparados do mundo conseguiu entrar despreparado na crise. Muitos comitês de resposta a pandemias e protocolos de lavagem de mãos e cuidados hospitalares vêm de 2009, do surto de H1N1.

Qual o futuro da saúde no mundo?

Países que passaram por surtos sérios têm hoje sistemas de saúde mais robustos. Espero que o sistema de saúde mundial saia mais forte e preparado para novos sustos, porque temos vírus batendo na porta e tentando se espalhar pela humanidade.

Por que isso acontece?

Convivemos em densidades cada vez maiores. Nossa imunidade está cada vez mais exposta com mais procedimentos médicos, mais proximidade e viagens que tornam maiores as chances de uma doença nova surgir e se espalhar. A humanidade caminha para ser cada vez mais fácil criar uma pandemia nova. A covid está trazendo reflexões importantes sobre fragilidades sistêmicas financeiras, educacionais e sanitárias.

Pesquisadores dizem que este pode ser o século das zoonoses.

Concordo. A grande maioria das doenças infecciosas com as quais estamos convivendo são zoonoses – dengue, zika, chicungunya, febre amarela, covid, Sars. São vírus que saltaram recentemente para humanos. Estamos acabando com os reservatórios animais e nos expondo mais.

Como devemos nos preparar para pandemias como esta?

Fazendo um gasto que parece desnecessário em um primeiro momento. Tem que se criar uma infraestrutura que ficará ociosa a maior parte do tempo, mas depois será essencial.

Existem exemplos?

Depois da Sars em 2003, a organização do torneio de Wimbledon fez um seguro contra pandemias, caso o torneio tivesse que parar por um surto viral qualquer que impedisse aglomerações. Passaram 16 anos pagando US$ 2 milhões por ano, um gasto “inútil”. Em 2020 tiveram que parar devido à covid-19 e receberam US$ 171 milhões da apólice. É o tipo de preparo que todo país tem que ter. O Vietnã desde 2003 mantém uma infraestrutura de laboratórios que agora foi essencial para o país testar todos e seguir a vida. Na Coreia do Sul morreram muitos com a Mers em 2015, mas o país desenvolveu infraestrutura tal que agora vende kits de teste para o mundo. Só os EUA são um paradoxo.

Por quê?

Eles mantêm este tipo de infraestrutura desde o 11 de setembro e os ataques de antraz, mas não souberam se mobilizar para segurar a covid-19. É o pior dos mundos: mantêm a infraestrutura gastando dinheiro e não a têm pronta para responder à emergência. O Brasil passa por isso.

O que quer dizer?

Atila: Descartamos infraestrutura de laboratório e pesquisa de universidades e hospitais na última década. Os cortes à ciência vêm de cinco anos, ficando piores ano a ano e agora isso faz falta. Financiar pesquisa, infraestrutura e formação das pessoas é fundamental.

Se a participação das empresas no financiamento às pesquisas crescer, como fica o acesso aos avanços decorrentes das pesquisas?

Esta é outra coisa que o Brasil faz pouco, talvez reflexo da falta de industrialização da nossa economia. A Fapesp, em São Paulo, sabe administrar isso bem. A vacina e os tratamentos que saírem para a covid-19 terão um braço forte disso. Poderá ser um avanço filantrópico, como é o caso da Fundação Gates, que abre e dá direito de uso aos resultados. Ou uma parceria comercial que tem que ter retorno comercial.

Ciência e imprensa saem mais valorizadas com a crise?

Sim. Isso é parte de um movimento que avança e retrocede no mundo todo. De acordo com o Instituto Reuters, de Oxford, os brasileiros estão trocando aos poucos a imprensa tradicional impressa, TV, revista e rádio pela internet. É a troca do off-line pelo on-line e no Brasil isso ocorre direcionado às redes sociais. Preferimos compartilhar notícias comentadas, não necessariamente de acesso direto ao site como fazem alemães, japoneses e canadenses. O conteúdo on-line, no nosso caso, é identitário e ideológico. Este é um movimento longo e grande tendência. Em certa parte, valiosa.

Em que medida?

A mídia on-line dá espaço para outras abordagens. É o meio que mais valorizo para a divulgação científica. Mas ao mesmo tempo há uma troca cruel neste processo. O on-line, principalmente o de mídias sociais, depende da dinâmica de compartilhamento e o que as pessoas compartilham é o que chama a atenção, o que causa indignação, é triste e e agressivo. Esse viés faz com que o conteúdo que se propaga na internet seja distorcido. O filtro humano via redes sociais é nocivo para a informação.

E o que ocorre agora?

Com um evento global sério fica claro que, para saber números confiáveis de mortes e leitos, o que se passa no âmbito internacional e nacional, o melhor caminho é a imprensa. O meio on-line pode trazer informações mais acessíveis, mas se a gente quer informação curada, o meio offline da imprensa tradicional é muito importante. Estávamos abrindo mão rápido e sem dar muito valor do papel da imprensa tradicional.

Vamos viver em estado permanente de emergência?

Iamarino: Permanente não sei, mas alternando ciclos de abertura e fechamento é muito provável. Cingapura já está neste movimento. A segunda onda de casos de Cingapura está crescendo mais rápido do que a primeira, quando fecharam a fronteira com a China, trataram e testaram quem chegava doente de lá. Mas não testaram quem vinha de outros países e agora o número de casos está crescendo rápido. Teremos estes erros e acertos daqui para a frente. Não acredito em estado permanente de emergência mas alternado, sim.

Como reverter a situação de precariedade em que precisamos importar até máscaras?

A demanda dos próximos anos por equipamentos de proteção, testes, álcool em gel, desinfetantes, reagentes para testes, equipamentos de laboratório, será seriíssima. Lugares que já passaram por um problema grave com a covid, ainda não enfrentaram o o pior. Em 23 de abril, Nova York divulgou os resultados dos primeiros testes imunes que fizeram. Descobriram que nos lugares mais atingidos por volta de 20% das pessoas tiveram contato com a covid. Seria um cenário otimista se 90% ou 95% dos novaiorquinos tivessem pego o vírus e não um quinto deles. Isso quer dizer que o número de pessoas que podem pegar o vírus é grande o suficiente para justificar pensarmos em uma produção forte desse tipo de equipamento.

Qual o papel da divulgação científica?

Estamos transitando por um momento inédito. Já tivemos pandemias que moldaram a humanidade, mas esta é a primeira em que sabemos quem é o agente causador, como é transmitido e o que podemos fazer a respeito. É a primeira em que a humanidade tem poder de decisão e isso depende da ciência. A ciência é a nossa vela no escuro, a lanterna que temos agora para encontrar o caminho para fora da pandemia. Mas a saída depende tanto das pessoas quanto da ciência. O isolamento depende das pessoas colaborarem, quarentena depende das pessoas ficarem em casa, tratamentos e vacinas dependem das pessoas acreditarem neles. É aí está a importância da divulgação científica.

Como reduzir a desigualdade no acesso à informação?

A maioria das pessoas tem celular, TV, rádio. Quem mais tem acesso a pessoas carentes é o governo e a imprensa. A imprensa está fazendo o seu papel. Governos regionais, também. Mas pesquisas indicam que quanto menor a formação, menor o acesso à ciência. Só o Estado tem instrumentos para chegar a estas pessoas.

E o combate às fake news?

A divulgação científica ainda trabalha com o modelo ultrapassado de déficit de informação, que assume que as pessoas não sabem sobre ciência porque falta informação. Quem não se vacina, quem não acredita em aquecimento global, quem não acha que o vírus causa um problema é porque não se informou o suficiente? Não. Tem quem acredite que a a covid não mata, que as pessoas morreram de outros problemas e só tinham o vírus. Médicos falam isso. São movidos por ideologias tão fortes que fazem com que questionem a realidade.

A ciência é ideológica?

A ciência não é ideológica, mas atribuímos matizes ideológicos à informação. Isso está acontecendo com a covid-19 e dificulta que as pessoas se informem. Parte do papel da divulgação científica é entender quais são os movimentos político-ideológicos que motivam o questionamento da informação e trabalhar com eles.

Pesquisadores dizem que é urgente proteger a biodiversidade, porque ali estão curas de doenças.

Fundamental. Há o valor imediato que os recursos naturais podem trazer, que é derrubar uma árvore e vender o tronco, devastar uma região e criar gado. E existe o retorno de longo prazo, que vem de se desenvolver um fármaco, promover o turismo sustentável de uma região. Mas essas formas sustentáveis dependem de investimento inicial forte. Sem uma indústria farmacêutica parruda, que custou bilhões para ser feita, não temos como fazer uso dessa biodiversidade. É uma grande perda, porque um fármaco que venha dali, como fizeram com o que regula pressão retirado do veneno da jararaca, rende bilhões.

Haverá um Dia D ao fim desta pandemia?

Teremos um dia D se existir uma vacina logo. Talvez será a semana D, o mês D, o semestre D, enquanto se produzem e distribuem as doses. Ou será uma guerra longa, vencida no dia a dia em que vamos nos isolando, voltando às atividades com controle, fazendo testes e monitorando.

Valor Econômico