Ações afirmativas para a universidade, mas não universidade para ações afirmativas

Wagner Leal Arienti

A UFSC noticiou que ampliou sua política de ações afirmativas. Além de  percentuais para entrada no vestibular dos cursos de graduação, desde 2008, houve a  decisão por estabelecer cotas para entrada de estudantes negros, indígenas, com alguma  deficiência e outras vulnerabilidades sociais nos cursos de pós-graduação. Por motivo  desta entrada, estes estudantes são referidos como cotistas, mas na sala de aula são  principalmente estudantes. Parabéns a Câmara de Pós-Graduação por esta decisão que reflete um valor da maioria da comunidade universitária, sendo que a minoria contrária  não se manifesta abertamente. 

Como um princípio para inclusão e diversidade em uma sociedade com grandes  desigualdades econômicas e sociais e, ao mesmo tempo, uma ampla heterogeneidade  étnica, ações afirmativas se tornaram política a ser seguida pelo Estado e seu aparelho  operacional e, dado o exemplo, pela sociedade, como vemos recentemente algumas  empresas também adotarem seleção com critérios específicos. A universidade como  instituição educacional, principalmente as universidades públicas por serem estatais,  devem ser inclusivas, pois como instituição que se modernizou deve realizar o princípio  caro da modernidade que vê a educação como o meio principal não apenas de  sobrevivência e vivência mas principalmente de ascensão econômica, social, cultural e  humanitária. Por isso, a educação deve ser universal, e a educação superior deve incluir  cada vez mais a diversidade da população brasileira e se aproximar do ideal de que a  educação capacita e transforma a todos, independente de origem. Aí sim, cada um pode  contribuir com sua capacidade, habilidade e vontade. 

Feito este preâmbulo para deixar claro que sou favorável à política de ações  afirmativas, quero passar, a partir de agora, a fazer uma crítica. A universidade ao  adotar uma política de ações afirmativas na entrada e aplaudir cada estudante cotista  quando se forma, como uma evidência de alcançar os objetivos da sua política,  focaliza as luzes nos resultados positivos, mas encobre resultados negativos. Sendo  que o problema não é exclusivo de estudantes cotistas, mas atingem também os de  classificação geral, e leva a resultados negativos encobertos, quais sejam: o número excessivo de reprovações por nota, por falta e de abandono.1 De acordo com minha  modesta e limitada opinião, a causa dos resultados negativos, que tira muito do alcance  da política de ações afirmativas, está no conteúdo programático das disciplinas, na  pedagogia da maioria dos professores, na formação dos professores, na visão elitista do  conteúdo lecionado e no elitismo dos próprios professores.  

Temos, assim, uma maior democracia na entrada da universidade, a continuidade  de um elitismo ao longo da universidade e a exaltação do individualismo nas  formaturas. Com a política de ações afirmativas podemos nos sentir progressistas, mas  os problemas persistem, embora encobertos. Exemplos positivos individuais podem ser  citados e são um estímulo para aqueles que se enquadram nos critérios das ações  afirmativas, mas não alcançam a massa excluída. O que deve ser criticado não são as  ações afirmativas adotadas pela universidade, mas a universidade, principalmente em  sala de aula quando os professores apresentam os conteúdos das disciplinas, não está  voltada para refletir e agir sobre as causas da exclusão. A sala de aula e os professores precisam se abrir metaforicamente, no sentido de ampliar as lições ensinadas, e literalmente, no sentido de ir até os locais e contextos para conhecer os excluídos e  invisíveis que não são abordados nos livros e periódicos. 

Universo dos estudantes mudou, mas a aula continua a mesma 

A política de ações afirmativas mudou o universo de estudantes, vemos a sala de  aula mais diversificada, mais heterogênea. No entanto, a aula continua a mesma. O  conteúdo programático das disciplinas continua o mesmo, a pedagogia dos professores  continua a mesma. Não significa que com a maior diversidade da sala de aula o  conteúdo deve ser mais fácil pois o conhecimento prévio dos estudantes está mais  desnivelado, isto é, com uma maior amplitude pelas notas díspares do vestibular. Se a  universidade é transformadora deve elevar gradualmente o nível daqueles que entram com uma base mais precária. Alguns conteúdos básicos devem ser dados a todos e  exigido de todos. O problema não é o conteúdo básico, mas sim as disciplinas de teorias  mais específicas e disciplinas mais analíticas. Os problemas são: (i) a forma didática que  é apresentado o conteúdo e (ii) a falta de amplitude do conteúdo das disciplinas de  forma a não alcançar o interesse dos estudantes.  

A pedagogia e didática dos professores continua a mesma pois estes, em sua  maioria, foram formados em mestrados e doutorados intensivos em conteúdos e  direcionados para a pesquisa de temas relevantes para o mainstream da academia e para  a publicação em periódicos de nível internacional, que tem uma pauta conservadora.  Além disso, os professores enfrentam, ou nem enfrentam, um dilema: deve-se alterar  conteúdo programático e forma didática dada a maior diversidade da turma? Após a entrada, deve-se tratar os estudantes cotistas e de classificação geral de forma igual ou  deve haver um tratamento especial? Quão diferente e especial deve ser este tratamento  e orientação pedagógica? Pelo meu conhecimento, os professores não foram informados  e preparados para pensar e lidar com estas questões. Sendo assim, tudo continua o  mesmo. Os problemas pedagógicos persistem e afetam cotistas e não cotistas. Mas os  professores não sabem como lidar com os problemas. Os professores dominam bem o  conteúdo da disciplina e, com isto, acham que cumprem bem o dever de ensinar. Mantém-se o esforço de apresentar bem o conteúdo, mas o aprendizado é com os  estudantes, eles que se virem 

O segundo problema que identifico refere-se ao conteúdo programático das  disciplinas. Este conteúdo é ditado pelo conteúdo mínimo que todo estudante de  graduação e pós-graduação deve saber, sendo assim o professor tem que se preocupar  em lecionar o conteúdo mínimo necessário. Mas, quem define este conteúdo mínimo  necessário? O professor é refém do mainstream, do sumário dos manuais teóricos, das  questões que caem em concursos, inclusive de concursos para admissão na pós graduação, e dos temas de aceitação de artigos dos periódicos internacionais e  nacionais. É difícil fugir dos conteúdos estabelecidos pela tradição do sistema.  Portanto, enfrentamos a seguinte situação em sala de aula, de um lado, o corpo discente  está mais diversificado, vem de realidades diferentes e tem expectativas que podem  entender e mudar a sua realidade, de sua família, comunidade e sociedade. De outro  lado, o professor apresenta um conteúdo totalmente distante da realidade que os alunos  vêm e da qual deveriam estudar para intervir no futuro. A entrada da universidade se  democratiza com as ações afirmativas, o conteúdo das disciplinas continua restrito,  elitista e alienante. 

O estudante cotista recebe um conhecimento abstrato e geral mas de difícil  relação com a sua realidade. A trajetória do abstrato e geral para o concreto e específico  é difícil para estudantes pois em poucos momentos na universidade é feito o exercício de aplicar o conhecimento para entender uma realidade que pouco aparece nos livros e  periódicos. Não adianta também dar um conteúdo mais de Esquerda, na suposição de  que o estudante cotista precisa de ideologia, pois também é muito abstrato e com  elucubrações distantes e verborrágicas, enquanto os estudantes têm vários problemas  concretos para resolver no presente e no futuro. 

É muito bonito aplaudir na formatura a turma que está graduando,  principalmente quando tem um bom número de cotistas. Na aparência, estamos  formando cientista e futuros profissionais. Na essência, podemos estar formandos  reprodutores do sistema, o que gera a inclusão de poucos e a exclusão de muitos.  Podemos estar aplaudindo a inclusão individual de algum cotista que poderá encontrar  uma boa atividade profissional. Mas não há garantias que tenha um conhecimento  adequado para acabar com a exclusão massiva da sociedade, não aprendeu como lidar  com o grande problema que afeta a sua comunidade. 

Mantém-se, assim, a política e prática de inclusão que o Brasil vem adotando, o  que acomoda as consciências progressistas: é uma inclusão individual. A prática de  inclusão se dá em apenas um sentido: a inclusão individual que aceita os valores e o  conhecimento de uma elite que determinou o que aprender e estudar. É um ‘vinde a mim os pequeninos’. O conhecimento está determinado por uma elite e deve ser  aprendido, como forma e conteúdo, conforme está estabelecido pela cultura da elite.  Ora, isto serve para a classe média, tenho minhas dúvidas se serve para os excluídos,  exceto raros indivíduos que, posteriormente, são glorificados como demonstração de  inclusão, de pluralidade, de diversidade. Não ocorre a inclusão pela ação dos próprios  excluídos que a partir de um conhecimento básico dirigem o seu novo conhecimento e  sua prática para entender sua condição inicial e transformá-la segundo seus próprios  valores, cultura e necessidades. Ocorre inclusão pela aceitação individual de excluídos  que adotam padrões definidos pela elite. Pouco ocorre a inclusão pela ação  transformadora dos excluídos que estabelecem seu próprio caminho de ascensão. 

A universidade tem muito a contribuir para esta inclusão massiva, em  quantidade, e endógena e autônoma, em qualidade. Há vários exemplos na sociedade de  organização própria e autônoma dos excluídos para gerar a sua própria transformação e  ascensão material, de acordo com seus valores e sua cultura. Mas, esta concepção de  inclusão, que está em práticas sociais, ainda não entrou em sala de aula. Pode até ter  entrado em discursos em assembleias, reuniões do CUn e discursos de formatura. Mas  na sala de aula, os estudantes ainda estão sentados ouvindo o conteúdo passado pelos  professores de acordo com a bibliografia mainstream e sobrecarregado de leitura que  pouco lhes dizem respeito e provas que exigem reprodução do conhecimento elitista. 

A política de ações afirmativas deve ser expandida, mas caso queira fazer parte  de uma inclusão massiva deve ser complementada para outras ações. Principalmente,  deve mudar conteúdo e pedagogia da universidade, e não apenas o vestibular. A sala de  aula deve se abrir não apenas para a diversidade de alunos, mas também para a  pluralidade de conteúdos. Além disso, deve-se abrir literalmente para que os estudantes  possam conhecer sua sociedade mais próxima e ter reflexões sobre como ouvir e agir  com uma dada comunidade, por vezes de alguns estudantes cotistas, para aprender  novas formas e novos conteúdos e ter outras preocupações. 

1 Baseio-me em observação de resultados de turmas que lecionei no curso de Ciências Econômicas e em  trabalho elaborado pelo NDE-Ciências Econômicas, Relatório de acompanhamento do desempenho  acadêmico do curso de Ciências Econômicas, UFSC, períodos letivos 2011.1 e 2011.2. Tais fontes não tem significância estatística mas serviram para construção de minha hipótese. Em termos de resultados  estatísticos da UFSC, baseio-me em Naspolini, T. Ações afirmativas: uma análise do comportamento  acadêmico de alunos ingressantes em cursos da Universidade Federal de Santa Catarina. Dissertação do  mestrado profissional em Programa de Pós-Graduação em Métodos e Gestão em Avaliação, UFSC,2017.

Wagner Leal Arienti 
Professor  do Departamento de Economia e Relações Internacionais (CSE- UFSC)