Cotas e mentalidade científica

 Por Armando de Melo Lisboa

“Os gênios de que se orgulha a humanidade são simplesmente crianças que conseguiram escapar ilesas dos sistemas escolares” (Agostinho Silva).

Com um texto instigante que nos faz pensar e conduz ao bom debate, o prof. Wagner Arienti adentra, com ousadia, no minado terreno da política de cotas universitárias, recentemente ampliadas na UFSC com a decisão da Câmara de Pós-Graduação reservando 28% das vagas da pós para negros, indígenas, pessoas com deficiência e em vulnerabilidade social. 

O título do artigo (“Ações afirmativas para a universidade, mas não universidade para ações afirmativas”) acena ao leitor, corretamente, que não cabe refazer a universidade para suportar as ações afirmativas. Todavia, as intenções postas no título acabam se chocando com a argumentação desenvolvida ao longo do ensaio.

Argumenta Wagner que os inúmeros resultados negativos que a UFSC vem colhendo decorrem de que o “universo dos estudantes mudou, mas a aula continua a mesma”. Assim, o que cabe rever “não são as  ações afirmativas adotadas pela universidade, mas a universidade”. Ou seja, nosso colega acaba defendendo a necessidade de ter uma universidade adequada às ações afirmativas…

Este desencontro entre o título e o corpo do artigo deriva duas situações, uma de ordem mais “incidental”, outra mais “conceitual”. 

Por um lado, o viés de Arienti nasce ao extrapolar e transpor disputas paradigmáticas vigentes na sua área profissional, a economia, para as demais áreas acadêmicas. No campo econômico é nítido que o domínio dos manuais do mainstream dificulta a aproximação da realidade social brasileira, acarretando graves distorções nos conteúdos programáticos das disciplinas que distam de refletir sobre nossos problemas. Ocorre que tal distorção não é decisiva em outras áreas, mesmo nas humanidades. 

O outro lado do viés reside em haver, no núcleo do argumento, uma confusão entre duas ideias distintas:

i) O papel vital da educação para a ascensão social e correção de injustas desigualdades. Este efeito transformador da educação é gerado quando sua ampla oferta é oportunizada para todas as crianças, desde a mais tenra idade. Ocorre que a universidade está na ponta final do processo educativo, sendo necessariamente uma instituição centrada na formação da mentalidade científica, como Mário Schenberg², talvez o maior físico brasileiro, esclareceu, e isto não é, infelizmente para todos, mas atende sempre uma elite, ou seja, os melhores. 

Aqui não adianta colocar o “carro na frente dos bois”, isto é, simplesmente expandir as universidades públicas e multiplicar enormemente o número de universitários, sem antes fazer o aprimoramento do ensino de primeiro e segundo grau aos cuidados do Estado. A educação cumpre plenamente sua missão quando bem aplicada na ponta inicial da vida dos cidadãos. Sem isto, ela atuará castrada e apenas corretivamente. Dificilmente a universidade capacitará o cidadão, especialmente o proveniente de cotas, possibilitando sua melhoria social, se ele nela adentrar com inúmeros déficits cognitivos provindos da malformação desde o berço e nunca corrigidos pelo sistema escolar.

Isto não significa que devamos cruzar os braços e assistir impávidos o desastre. Um dos pontos fortes do artigo de Wagner é a correta denúncia do “fracasso” da universidade, pois temos números excessivos de reprovações e abandonos em inúmeros cursos, sendo que, em muitos casos, a ampla maioria não chega a se formar, o que também contribui par empalidar a meritória política de ações afirmativas.

Não resta dúvida de que, uma vez adotada a política de cotas para o ingresso na universidade, ela carece, para ser efetiva e apresentar bons resultados nas formaturas, ser acompanhada de ações de apoio e acompanhamento ao estudante cotista ao longo de toda sua trajetória na universidade. “Elevar gradualmente o nível daqueles que entram com uma base mais precária” é tarefa permanente e hercúlea, mas que dificilmente reverterá todas as carências estruturais comprometedoras da vida acadêmica.

Ora, como não se pode rebaixar os níveis mínimos de exigência universitária, o que inibiria a mentalidade científica e comprometeria a missão desta milenar instituição, não cabe, portanto, reformar a universidade adequando-a para atender as ações afirmativas. Podemos minimizar o desastre nas formaturas, mas ele é inevitável em algum grau enquanto as condições de ensino prévias à universidade não forem sanadas.

ii) Todavia, a imposição da racionalidade científica desconectada dos problemas locais torna-a árida e impotente. 

O grande físico Freeman Dyson, numa brilhante obra sobre a ciência, tecnologia e o amanhã³, alerta que as “soluções vitoriosas serão locais, e não globais, ajustadas para as necessidades e tradições de populações globais” (p. 112). O mesmo é indicado por Schenberg quando aponta que não se pode simplesmente imitar e copiar, pois “nem sempre a cópia é adaptável ao Brasil” (p. 131). Um espírito científico sadio investiga e enfrenta problemas concretos, mormente os das sociedades onde está situado.

Este é outro princípio constitutivo da universidade: estar voltada para realidade concreta e particular de cada sociedade. Mas, isto independe da política de cotas, a qual apenas escancarou ainda mais a necessidade dum pensamento científico brasileiro. Os docentes precisam estar abertos para a diversidade das condições sociais de seus alunos, da sociedade brasileira, como defende acertadamente Arienti.

Assim, ganhamos todos com o aproximar do mundo acadêmico das culturas populares potencializado com as políticas afirmativas. Mas este enlace é incompreendido e fica impossibilitado quando nos fixamos em dois extremos:

● O que absolutiza o linguajar científico, tornando o pesquisador distante, insensível e surdo aos mundos não eruditos.

Atenção: fazer o elogio da “mentalidade científica” não é o mesmo que enaltecer a linguagem acadêmica, a ponto de avaliar que a ciência é o único paradigma válido de explicação dos fenômenos da vida e na melhoria da nossa condição. “A voz da ciência” não é a única a ter “autoridade na definição do destino humano”, descortina Dyson (p. 13).

Se o impulso racional levar a uniformização da compreensão do mundo apenas a partir da ciência austera e fria, a humanidade se empobrecerá, pois a pretensão da razão nega a incomensurabilidade das coisas, eliminando outras possibilidades explicativas da complexidade e mais adequadas para lidar com a as antinomias e ambiguidades da vida, as quais, inclusive, têm muito a oferecer aos cientistas como fontes de insights e saltos criativos (vide Isaac Newton). Obviamente, muito podemos aprender com as ciências, mas também muito pode ser aprendido pelas tradições e outras perspectivas. 

A arrogância científica também nos joga num mundo vazio e desprovido de sentido, pois nele belezas, sonhos, desejos, emoções e acasos deixam de ter significância, eliminando de forma perigosa outras formas de ser e outras possibilidades civilizacionais, talvez mais adequadas aos desafios do amanhã…

● O outro extremo que bloqueia o diálogo entre o mundo acadêmico e o popular reside no absolutizar dos universos “plebeus”, como se eles fossem puros e portadores de revelação. Se “cada cultura é toda cultura”, e se “toda cultura é portadora de barbárie”, como ensina a boa antropologia, então não cabe venerar culturas particulares, uma vez que inexistem culturas autênticas e ensimesmadas. Daqui também brotam fontes de graves distorções, contribuindo para a incompreensão vigente.

Assim, e de modo ainda mais acentuado nas universidades, é preciso partir do conhecimento crítico das culturas e estabelecer pontes interculturais, as quais, se sempre foram constitutivas de todas as culturas, agora se impõem ainda mais. pois não apenas se agudiza a  percepção de cada um como portador de múltiplas culturas, como também vivemos em mundos cada vez mais interfronteiriços.

2 – “Formação da mentalidade científica”. In: Estudos Avançados, USP, 12(5), 1991. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/8610/10161

3 – “Mundos imaginados”. Companhia das Letras, 1998.

Armando de Melo Lisboa é professor da UFSC

Os artigos publicados nesta seção não refletem necessariamente a opinião da diretoria e/ou dos filiados da Apufsc.