O público privado e a insaciedade

Por Dilvo Ristoff

— Então — disse a gigantesca Deméter — você não tem medo? Os cinquenta capangas de Eri largaram os machados e saíram correndo, gritando como garotinhas. Eri tentou se levantar, mas seus joelhos pareciam gelatina.

— Eu… hã, eu só… hã…

— Você queria ser famoso pelos banquetes! — rugiu Deméter. — E você vai fazer banquetes, Erisictão… todas as noites, um grande banquete, como você pretendia! Sou a deusa da colheita, a senhora de todo alimento. Você vai comer e comer pelo resto de seus dias, mas sua fome nunca será satisfeita!

Rick Riordan – Percy Jackson e os Deuses Gregos

O crescimento das matrículas da educação superior brasileira tem sido constante ao longo dos últimos 29 anos (1991-2019). Neste período, as matrículas cresceram de cerca de 1,5 milhão para os atuais 8,6 milhões. Estes números representam a soma das matrículas nos setores público e privado.

Quando, no entanto, observamos a evolução das matrículas em cada um dos setores, percebemos ritmos de crescimento muito distintos: enquanto o setor público cresceu 243%, o setor privado cresceu impressionantes 580%, ou seja, 2,3 vezes mais. Se considerarmos apenas as novas matrículas, aquelas criadas após a aprovação do PNE, percebemos que o setor privado continua em franca aceleração. É bom lembrar que a Lei do PNE estabeleceu, em sua Meta 12, que as novas matrículas do setor privado devem ficar limitadas a 60% do total. O que os dados mostram é que as novas matrículas somam 88%. Trata-se não só de um flagrante desrespeito à lei, mas de um deboche com o parlamento que a aprovou e com o poder de controle do Ministério da Educação.

As consequências desse crescimento desigual são claras: as matrículas públicas, que em 1991 representavam 39%, passaram a representar apenas 24% em 2019; já o setor privado passou de uma representação de 61% para 76%. Como uma imagem diz mais que muitas palavras, recomendo uma olhada no gráfico abaixo, que mostra o ritmo da evolução das matrículas em cada um dos setores:

Fica claro que as matrículas cresceram a uma velocidade alucinada de montanha-russa no setor privado e a uma velocidade de escorregador de parquinho de crianças no setor público.

Como dos 8,6 milhões de matriculados, 6,5 milhões (76%) estão no setor privado, é natural concluirmos que a educação superior é essencialmente privada. O que escapa à maioria das pessoas, no entanto, é que as matrículas do setor privado são em grande parte financiadas pelo poder público e poderiam, portanto, ser consideradas matrículas públicas em instituições privadas.

Se olharmos para a fonte de financiamento das matrículas privadas, concluímos que dos 6,5 milhões de matrículas do setor, 2,5 milhões, ou seja, 39% são totalmente financiados por apenas dois programas do governo federal: Prouni e Fies. Este percentual em 2018 foi de 55% e, em 2014, atingiu estonteantes 71%. Com as recentes restrições do acesso ao Fies, este percentual de uso de recursos públicos federais pelo setor privado caiu drasticamente e, ainda assim, apenas os dois programas acima financiam quase 40% do total das matrículas privadas.

É importante lembrar que não estão incluídos neste cálculo os repasses públicos estaduais (por exemplo, o Art. 170 da Constituição de Santa Catarina e as bolsas de vários tipos e versões estaduais do Prouni, com origem nos cofres públicos) e municipais, em geral contabilizados em termos de doações de terrenos, prédios, instalações, equipamentos, transporte gratuito de estudantes, entre muitos outros. Também, é claro, não estão computados os repasses públicos para atividades de pesquisa e extensão em instituições de educação superior privadas. Se tudo isso for contabilizado, chegaremos a várias conclusões: 1) que a educação superior brasileira é menos privada do que parece; 2) que a educação superior privada brasileira é majoritariamente financiada pelo poder público, numa parceria público-privada poucas vezes percebida e por poucos apreciada; e 3) que as empresas educacionais, em especial as com fins lucrativos, consomem gulosamente as políticas socializantes da educação, enquanto caminham cada vez menos com as próprias pernas.

Quando, em 2014, o Fies financiava 53% das matrículas do setor privado e o Prouni, outros 18%, perguntei a um empresário da educação quantos de seus alunos se beneficiavam do Fies, e ele me respondeu: “Estabelecemos um limite de 20%. Mais não aceitamos! Vá que amanhã a política mude, a fonte seque e estamos com a metade dos nossos alunos dependendo do governo. Seria um desastre. Temos que aprender a andar com as próprias pernas. Temo que alguns estejam com um apetite insaciável e não se dão conta do processo de autofagia em curso.”

“Autofagia! Vão acabar como Eri”, falei!

“Eri quem?”, perguntou.

“Eri-sictão”, respondi.

Expliquei a ele que Erisictão, rei da Tessália, era rico, destemido, arrogante, exibido e desrespeitoso. Diz a lenda que, na sua ambição por ampliar o seu reino, passou a devastar grandes áreas e a derrubar as árvores que encontrasse pela frente, em especial as mais frondosas e economicamente lucrativas, fossem elas sagradas ou não. Certo dia invadiu o bosque da deusa da agricultura e ordenou a seus homens que derrubassem todas as árvores. Diante do esplendor de um antigo carvalho, um de seus homens se recusou a executar a tarefa. Erisictão, de imediato, o decapitou de um só golpe. Pôs-se ele próprio, então, a derrubar o carvalho, sabendo ser essa a árvore favorita da deusa Deméter, a deusa da colheita. Erisictão foi por isso duramente castigado. A deusa colocou a fome em seu estômago, despertando nele um apetite voraz e insaciável. Em pouco tempo, Erisictão consumiu toda a comida disponível em seu palácio e gastou toda a sua fortuna para comprar mais e mais e mais comida. Ainda faminto, decidiu então vender a sua própria filha como escrava. Mesmo assim, não conseguiu saciar-se e continuava a emagrecer sem parar. Diz a lenda que, enlouquecido e sem mais nada para consumir, Erisictão começou então a comer os próprios membros e acabou devorando a si próprio.

O empresário sorriu e me olhou com um misto de espanto e surpresa.

“De fato”, disse, “quando o apetite é grande demais não há comida que chegue! Temos que encontrar o ponto da saciedade. Não podemos perder a capacidade de andar com as próprias pernas. Tem gente que exagera”.

Estranhamente a minha leitura do comportamento de alguns de seus colegas do setor privado não lhe pareceu um exagero. Talvez porque já tivesse percebido que o Fies, concebido para ajudar os estudantes com dificuldades financeiras, rapidamente se tornara, para empresários inescrupulosos, a principal fonte de receita. A facilidade de acesso a recursos aparentemente ilimitados tornara o seu apetite tão voraz que começaram a vender ao governo o que não tinham, onde não deviam e a preços escandalosamente superiores aos de mercado. Como consequência, o Fies – um bom programa de financiamento estudantil, a juros altamente subsidiados – teve que ser mudado radicalmente. A partir de 2015, o MEC passou, entre outras medidas, a habilitar cursos participantes, a monitorar os valores das mensalidades, a selecionar os alunos a serem financiados e a exigir, a exemplo do Prouni, nota mínima de 450 pontos no Enem. Exceto pela exigência de pontuação mínima, as demais medidas tinham um objetivo muito claro: controlar o apetite voraz de alguns empresários da educação.

Poucos questionariam a importância, para a democratização do acesso à educação superior, de parcerias público-privadas como as representadas por programas como o Prouni e o Fies, mas fica evidente que regras, limites e controles para a corrida privada aos cofres públicos devem ser cuidadosamente estabelecidos. Se a sua fome por recursos públicos se tornar insaciável, o setor privado se transformará fatalmente no Erisictão de nosso tempo. Excessivamente amparado pelos braços financeiros do Estado, o setor acabará por atrofiar a sua própria musculatura e, com o tempo, será incapaz de andar com as próprias pernas. Como bem lembra Riordan: “Um deus que controla a comida pode lançar bênçãos… e também maldições muito ruins.”

Dilvo Ristoff é doutor em literatura pela University of Southern California, nos Estados Unidos. Foi diretor de Estatísticas e Avaliação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), diretor de Educação Básica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e diretor de Políticas e Programas da Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação (SESu/MEC). Foi também reitor da Universidade Federal da Fronteira Sul. É autor e coautor de inúmeros livros, entre eles, Universidade em foco − reflexões sobre a educação superior (Editora Insular, 1999), Neo-realismo e a crise da representação (Insular, 2003) e Construindo outra educação: tendências e desafios da educação superior (Insular, 2011). Atualmente ministra aulas e orienta dissertações no Programa de Mestrado em Métodos e Gestão em Avaliação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).