Não abrimos mão da liberdade de organização sindical

Por Astrid Baecker Avila, Célia Vendramini, Maria Regina de Ávila Moreira, Maria Teresa Santos, Mauro Titton, Paulo M. B. Rizzo e Paulo Pinheiro Machado

A retomada, na Apufsc, do debate sobre vinculação a uma das entidades nacionais está se dando concomitante à retomada das mobilizações de rua e a outras atividades. Ainda não podemos retomar plenamente todas as atividades, mas nos faz bem ir, com os cuidados necessários, superando a condição de isolamento que a pandemia nos tem imposto. Os ataques que a Universidade Pública, a Ciência, a educação e todo o sistema público estão sofrendo têm atingido níveis extremos e requerem respostas rápidas e firmes de forma unitária e profundamente articuladas nacionalmente, reunindo não apenas o movimento docente, mas também organizações sindicais de outros segmentos, entidades científicas e tantas outras entidades defensoras da democracia e dos direitos sociais. Isto é, são as adversidades do momento que nos permitem afirmar que a retomada do debate sobre vinculação da Apufsc a uma entidade nacional dá-se em boa hora. É muito positivo que tenha sido lançado um boletim na última semana, coisa que não ocorre na Apufsc há um longo tempo. Vamos contribuir com os próximos números.

O mencionado boletim publica um artigo intitulado “Estrutura sindical brasileira: breve descrição”, de autoria de José Álvaro de Lima Cardoso, do DIEESE. É importante que o debate, que agora é retomado, leve em conta aspectos históricos do sindicalismo brasileiro, por isso saudamos a iniciativa. Ao pretender ser descritivo, o artigo, no entanto, não faz qualquer menção às relações dos trabalhadores brasileiros com a estrutura oficial. Omite-se de tratar dos processos de luta e de rupturas com aquela estrutura, que os trabalhadores promoveram, principalmente nas décadas de 70 e 80, do século passado, que ficaram conhecidos como “novo sindicalismo” e que teve conquistas. Destacamos que a história da Apufsc, do Andes e de todo o movimento docente está relacionada ao “novo sindicalismo”.

O processo constituinte, de 1987/88, consagrou muitas conquistas democráticas dos trabalhadores e do povo em geral, com limitações e contradições, que são resultantes das correlações de forças da época (exemplo: já existia centrão, que foi bem poderoso na Constituinte). Quanto ao sindicalismo, deve ser destacado:

Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:

I – a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical;

A vedação à interferência e à intervenção do Estado na organização sindical é a maior conquista que os trabalhadores brasileiros tiveram, como resultado de suas lutas e práticas sindicais desenvolvidas nos anos 70 e 80. Isso significa que a estrutura, apresentada no artigo do DIEESE, que chamaremos de “vertical”, com níveis (“graus”), no inferior, sindicatos; nos superiores, federações nos estados e confederações em nível nacional, não se trata de uma imposição legal. A própria CLT, prevê, desde sua origem, em 1943, no seu artigo 517, que possam existir sindicatos com bases territoriais diferentes do modelo, inclusive sindicatos nacionais. O sindicato, de acordo com a Constituição de 1988, não pode ter base menor que um município (Art. 8º, II). De acordo com o mesmo dispositivo “é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados”. O mencionado artigo do Boletim termina citando a Convenção 87 da OIT, para mostrar as limitações à liberdade sindical que ainda existem no Brasil, dando como exemplo a unicidade sindical.

Há ambiguidade no Art. 8º, que aparece na expressão “ressalvado o registro no órgão competente”, do inciso I, pois, por meio do registro, o Poder Público detém o poder de autorizar ou não a existência do sindicato e, desse modo interfere, cerceando a liberdade de organização. Nossa posição coletiva de princípio, isso é, que não podemos abrir mão, não pode ser outra: que o registro no órgão competente seja exclusivamente um registro e não uma interferência do estado na organização sindical, como a Constituição nos garante. A liberdade de organização sindical precisa ser efetivamente nosso ponto de partida e de chegada.

É com este espírito que os autores do presente texto redigiram uma carta à diretoria da Apufsc, publicada em 28/08/2019,que contesta a suposta exigência de dissolução da Apufsc em caso de a assembleia vir a deliberar pela adesão ao Andes (Carta à diretoria da Apufsc – Apufsc-Sindical), que havia sido defendida pelo Assessor Jurídico da Apufsc, José Prudente Mello, que desenvolve seus argumentos em resposta à nossa carta e que foi publicada no mesmo dia (Resposta à correspondência enviada à Apufsc – Apufsc-Sindical). Mas, quais seriam as implicações dessa suposta necessidade de dissolução? Por que não esperar para publicar nos próximos boletins e tratar o assunto já?

Caso fosse verdadeira a necessidade de promover a dissolução da Apufsc-sindical, teríamos inviabilizada a possiblidade da alternativa de filiação ao Andes. Estaríamos diante de duas exigências estatutárias diferentes em relação aos votos necessários. Para filiar a Apufsc a uma entidade é exigido “o voto eletrônico de, no mínimo, ¼ (um quarto dos filiados efetivos da Apufsc-Sindical em dia com suas obrigações regimentais” (Art. 19, § 3º). Como a Apufsc conta atualmente com aproximadamente 2.830 sócios efetivos (número que sofre variações no tempo), seria necessário o voto favorável de 708 filiados. Repare-se que não se trata da participação de 708 filiados, mas do voto favorável. Como são duas alternativas, Andes e Proifes, estamos diante de um grande desafio de mobilização para que uma delas alcance a votação necessária. Para dissolver a Apufsc, de acordo com o mesmo artigo, será exigido “o voto de no mínimo 2/3 (dois terços) dos seus filiados efetivos em dia com suas obrigações regimentais” (§ 4º). Em números, seria o voto de 1.887 filiados. Portanto, teríamos que acrescentar mais de mil votos à exigência inicial, sendo que ninguém deseja a extinção da entidade, mas o seu fortalecimento. Caso isso fosse uma exigência real, teríamos que desistir, que abandonar o debate e não gastarmos coletivamente energias à toa, pois não há registro histórico de tamanha votação. Por isso, escrevemos agora.

A imprensa da Apufsc reuniu todo o material que foi produzido durante o debate, desde 2018, o que está disponível em Filiação Nacional da Apufsc – Apufsc-Sindical. Ali encontramos também um texto informativo sobre as diferenças entre as duas opções de entidades nacionais, onde está escrito:

Assembleia de filiação

Andes

O estatuto da Apufsc estabelece condições diferentes para tratar da dissolução da entidade, exigência necessária para filiação ao Andes. É necessário convocar uma AGE destinada a dissolver a Apufsc, seguida de votação que exige, no mínimo, dois terços dos filiados em dia com suas obrigações.

O fato de a imprensa da Apufsc ter assumido como verdadeira a exigência de dissolução significa que a diretoria assim assumiu, pois ela é responsável pela imprensa. O texto não indica fontes e adota uma expressão curiosa, “exigência necessária”, o que é uma redundância, que acreditamos que seja utilizada para dar ênfase. Ocorre que ênfase não é prova de nada.

A fonte é o texto do assessor jurídico mencionado acima, o qual tem suas fontes, dentre elas um texto de Amauri Mascaro, de 2008, intitulado O novo registro de sindicatos (Microsoft Word – 29163417_ANDT_Amauri_Registro_2008.doc) e que trata da Portaria 186, de 10/04/2008, do MTE, que regula os procedimentos relativos aos registros das entidades sindicais no Cadastro Nacional de Entidades Sindicais, CNES, que hoje está vinculado ao Ministério da Economia e a portaria atualmente em vigor é a de número 17.593, de 24/07/2020. Mascaro assim expõe:

O registro sindical somente será cancelado por ordem judicial, na via administrativa se constatado vício de legalidade no processo de concessão, a pedido do próprio requerente e na ocorrência de fusão ou incorporação entre duas ou mais entidades diante da dissolução, nesses casos, da entidade sindical anterior. O cancelamento do registro será publicado no Diário Oficial da União e anotado, com o motivo, no CNES.

O que ocorre é que ao voltar a ter vínculo com o Andes será necessário informar o CNES, pois o registro deixa de ser da Apufsc, que passa adotar o do Andes. As portarias que, ao longo do tempo, orientam as atividades do CNES, admitem que possa ocorrer dissolução de entidades sindicais, fusão de entidades e uma entidade maior incorporar uma menor, o que seria o mais próximo do que ocorreria caso se decida restabelecer o vínculo da Apufsc com o Andes e que justificaria o cancelamento do atual registro da Apufsc. O registro pode ainda ser cancelado por ordem judicial, ou por via administrativa, caso seja verificado algum vício na concessão do registro. Ocorre que Mascaro afirma que, no caso de fusão ou incorporação, estaríamos diante da dissolução da entidade sindical anterior. Acontece que isso não está escrito na Portaria 186/2008 e nem poderia estar sob pena de ferir o Art. 8º da CF, e tampouco encontra-se na que está em vigor, a Portaria 17.593/2020. Vejamos o que está escrito, sobre isso nas duas portarias.

Portaria 186/2008:

Art. 17. O registro sindical ou a alteração estatutária somente será cancelado nos seguintes casos:

I – por ordem judicial que determine ao Ministério do Trabalho e Emprego o cancelamento do registro, fundada na declaração de ilegitimidade da entidade para representar a categoria ou de nulidade dos seus atos constitutivos;

II – administrativamente, se constatado vício de legalidade no processo de concessão, assegurados ao interessado o contraditório e a ampla defesa, bem como observado o prazo decadencial previsto no art. 53 da Lei nº 9.784, de 1999;

III – a pedido da própria entidade, nos termos do art. 18; e

IV – na ocorrência de fusão ou incorporação entre duas ou mais entidades, devidamente comprovadas com a apresentação do registro em cartório e após a publicação do registro da nova entidade.

Art. 18. Quando a forma de dissolução da entidade sindical não estiver prevista em seu estatuto social, o pedido de cancelamento do registro no CNES deverá ser instruído com os seguintes documentos:

I – edital de convocação de assembléia específica da categoria para fins de deliberação acerca do cancelamento do registro sindical, publicado na forma do inciso II do § 1º do art. 2º desta Portaria; e

II – ata de assembléia da categoria da qual conste como pauta a dissolução da entidade e a autorização do cancelamento do registro sindical.

Art. 19. O cancelamento do registro de entidade sindical deverá ser publicado no Diário Oficial da União e será anotado, juntamente com o motivo, no CNES, cabendo o custeio da publicação ao interessado, se for a pedido, em conformidade com o custo da publicação previsto em portaria específica deste Ministério.

O Art. 18, conforme o que está claramente escrito, refere-se exclusivamente ao inciso III do Art. 17, isto é, para o caso de entidades que resolveram se dissolver, e, para o inciso IV, fusão ou incorporação, não é exigida dissolução. O doutrinador se equivocou na leitura.A Portaria em vigor, a 17.593/2020, trata o assunto com a mesma posição e com a seguinte redação

Art. 27. O registro sindical será cancelado nos seguintes casos:

I – administrativamente, se constatado vício de legalidade no processo de deferimento, assegurado aos interessados o direito ao contraditório e a ampla defesa no prazo de dez dias, bem como observado o prazo decadencial de cinco anos, conforme disposições contidas nos arts. 53 e 54 da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999;

II – a pedido da própria entidade ou de terceiros, mediante apresentação de certidão de dissolução do cartório competente ou comprovante de inscrição no CNPJ com situação de baixada ou nula;

III- na ocorrência de fusão ou incorporação, na forma dos arts. 6º e 7º; e

IV – por determinação judicial.

Os artigos 6º e 7º tratam dos documentos necessários para o registro de fusão e incorporação e não fazem qualquer menção a dissolução.

Há ainda, na argumentação do assessor jurídico, a afirmação de que, na transformação de associação para sindicato, ocorre uma mudança de natureza e que a entidade deixa de ser associação que, uma vez transformada e registrada, só poderia deixar de existir pela via da dissolução, o que não está de acordo com as portarias citadas. Por essa argumentação, também deixaria de ser possível que o processo se desenvolva como propusemos, em nossa carta a diretoria, que, uma vez decidido filiar-se ao Andes, seria realizada uma assembleia na qual decidiríamos por abrir mão da condição sindical da Associação e que, uma vez feito isso, decidiríamos pela adesão da Apufsc (associação) ao Andes, na condição de Apufsc-Seção Sindical.

A ação do Poder Público para proceder o registro de uma entidade sindical, para que não seja uma intervenção, atém-se exclusivamente na observação de que não haja mais de uma entidade, da mesma categoria, na mesma base territorial, que é o que exige a Constituição.

Neste passo é importante frisar que na medida em que a Constituição Federal (art. 8º, I) vedou expressamente que a lei viesse a exigir autorização do Estado para a criação de sindicato (salvo o registro no órgão competente), é evidente que muito menos compete ao Estado impedir que a categoria decida livremente sobre o retorno de uma entidade sindical à sua anterior conformação de associação docente, até porque, neste caso, sequer há necessidade de controle estatal sobre a unicidade sindical.

Isso já foi, de certa forma, pacificado, no ano de 2010, em julgamento, no qual, a Juiza Rosana Basilone Leite Furlani, da 5ª Vara do Trabalho de Florianópolis, numa ação movida pela Apufsc contra o Andes, decide favoravelmente à Apufsc-Sindical, concedendo antecipação de tutela. Em sua sentença, a Juíza desbanca a tese da dissolução, que fora utilizada na defesa do Andes, e afirma o seguinte:

 “o histórico dos fatos indica que o autor foi criado anos antes do reclamado (em 24.06.1975, conforme páginas 3 e 28 do 1º arquivo de documentos da inicial) e que, mesmo durante o tempo em que se integrou ou se filiou ao réu, teve mantida a sua personalidade jurídica própria, assim como teve assegurada a sua independência política, administrativa, patrimonial e financeira”

O autor é o Sindicato dos Professores das Universidades Federais de Santa Catarina, Apufsc-Sindical, que havia sido criado no final de 2009, mas que a Justiça do Trabalho entende que é a mesma entidade que fora criada em 1975, que é uma associação. Isto é, a transformação em sindicato não fez com que a Apufsc deixasse de ser Associação, a qual nunca foi dissolvida e que cremos que a dissolução não corresponda ao desejo dos professores. (Justiça reconhece legitimidade da Apufsc-Sindical – Apufsc-Sindical e Apufsc-Sindical derrota Andes na Justiça – Apufsc-Sindical)

Voltaremos a escrever ao longo dos debates e gostaríamos de concluir fazendo um apelo à reflexão sobre o absurdo que se passa. A Constituição Federal nos garante o direito à liberdade sindical e veta ao Poder Público interferir na vida dos sindicatos. Nós recusamos a liberdade e pedimos a tutela do Estado que, ao não existir em lei, inventamos supostas regras para nos tolher a liberdade. Isso é grave em qualquer situação, e é extremamente grave para o período que estamos vivendo, marcado por ameaças fascistas. Como encararmos as ameaças fascistas se rejeitamos a libertação que já temos em relação a uma estrutura sindical estatal que fora inspirada na Carta Del Lavoro, do partido de Benito Mussolini?

Pratiquemos a liberdade.