O orgulho burguês do vestibular

*Por Nildo Domingos Ouriques

Para Julia e Beatriz

A ideologia meritocrática necessita do vestibular assim como a sociedade burguesa exige a meritocracia. Os melhores – somente os melhores! – devem ser respeitados em sua superioridade e, sobretudo, tomados como a medida exata num sistema baseado no suposto da concorrência entre os cidadãos portadores de direitos iguais, em que a desigualdade de classe simplesmente desaparece sem deixar vestígios. Ademais, no capitalismo, os vencedores são sempre exibidos como resultado de trabalho duro somado ao talento individual natural alimentado por virtudes familiares, além, é claro, de uma boa pitada de disciplina e foco. O conto é largo, mas a brevíssima advertência é suficiente para a reflexão acerca do vestibular.

Há alguns dias, circulando no Estreito – parte continental de Florianópolis – me deparo com a apologia burguesa da meritocracia: um colégio indica num painel gigante que entre os cinco primeiros classificados no vestibular da UFSC, três estudaram naquela instituição privada. Na página da meritória e até então desconhecida empresa educacional, descubro que o DNA de aprovação da instituição criada no distante 1963 por estudantes de medicina de Ribeirão Preto (SP), é uma tradição iniciada num despretensioso cursinho pré-vestibular desde seus primórdios gozando de ótima reputação regional. Pequenas empresas, grandes negócios, reza o bordão televisivo!  

O orgulho burguês do vestibular rende bilhões aos capitalistas num país que recusa a luta pela universidade de massas e ainda mantém 30% do nosso povo na repulsiva condição de analfabetos e analfabetos funcionais. Na Argentina e no México – ambos países subdesenvolvidos e dependentes – ninguém consegue entender e menos ainda aceitar o odioso filtro do vestibular vigente no Brasil. Entre nós, os universitários ignoram que nossos vizinhos – nem falar de Cuba! – não possuem vestibular e garantem há décadas um sistema universal de ingresso. A ignorância brasileira sobre os países latino-americanos permite que o orgulho burguês do vestibular navegue soberano entre nós. Entretanto, à ignorância nacional em relação aos países latino-americanos, é necessário agregar a indispensável dose de oportunismo político da esquerda liberal, incapaz de enfrentar o problema educacional pela raiz.

Assim, todo início de ano assistimos à festa dos vencedores no vestibular e às declarações sobre as virtudes familiares correspondentes. A escola privada não perde a ocasião e manifesta orgulho desmedido consciente que tanto na política burguesa quanto no processo de acumulação, a propaganda é a alma do negócio… Em algumas universidades públicas até mesmo o reitor participa do ato em que a universidade registra o feito individual enquanto milhares de estudantes filhos da classe trabalhadora amargam mais um ano de frustração longe dos bancos escolares. 

A direita liberal exibe seu troféu 

Numa sociedade de classes – especialmente nos países dependentes e subdesenvolvidos da periferia capitalista – um médico, advogado, arquiteto ou engenheiro reúne, em princípio, as condições necessárias para a confirmação do prestígio social a partir de esforço próprio a caminho das pequenas glórias do profissional liberal sem patrão, dono de seu nariz. Nesse contexto, num mar de famintos ou desclassificados que constituem o “resto” da população, o “êxito individual” antes de ser um problema, é apenas a confirmação de nossos talentos que, noutro contexto, bem que poderiam indicar o caminho de superação de todos os males com os quais convivemos bastante bem desde sempre.

Quem leu Marx sabe que não devemos brincar com a ideologia. É caso sério. Na sociedade burguesa, o “êxito individual” é premissa ideológica sem contestação, com aceitação quase natural. Ocorre que a medida do indivíduo sempre será social, razão pela qual as condições sociais do êxito individual são o que realmente importa e nos obriga à revisão da lógica dominante de maneira permanente. Foi Schumpeter quem produziu a apologia do “espírito animal” dos capitalistas responsável pelas inovações e conquistas científicas e tecnológicas no sistema capitalista como se fosse possível explicar o self made
man
 sem qualquer consideração pelo “fluxo da maré que sobe” ou “baixa” obedecendo à dinâmica da expansão e das recorrentes crises do sistema. 

A despeito da abundância de exemplos e das duras lições oferecidas em cada crise, a ideologia dominante afirma sempre a responsabilidade individual tanto no êxito quanto no fracasso dos concorrentes. Assim, o afamado empresário exibido na capa da mais importante revista de negócios
no ano passado como o “homem do ano” pode também figurar algum tempo depois como execrável sujeito responsável por fraudes contábeis monumentais diante de um tribunal zeloso do jogo considerado limpo e transparente do mercado. O ciclo econômico, as contradições e antagonismos inerentes ao sistema capitalista são, em consequência, diluídos na experiência individual e, no limite, inseridos nas deficiências aparentemente insuperáveis de um país marcado pela recusa do mérito que, se respeitado e alentado, poderia nos tirar desse vale de lágrimas do subdesenvolvimento.

Há algo mais grave que passa sem reflexão profunda no nosso meio ocultado pela apologia do vestibular: esse sistema organizou em larga escala até agora o ensino médio! É possível perceber que o ensino médio estava voltado em primeiro lugar para atender às exigências do vestibular e somente
secundariamente organizado por um projeto educacional destinado a fomentar as exigências científicas, tecnológicas e culturais necessárias para romper com a dependência e o subdesenvolvimento. Um projeto de educação com o objetivo de superar as barreiras próprias do subdesenvolvimento, portanto,
não pode ser organizado com pequenas ou grandes mudanças na base ou na pós-graduação. Menos ainda com mudanças cosméticas no sistema de ingresso universitário!

A pequena contribuição da esquerda liberal

A contribuição da esquerda liberal à chamada “ordem competitiva” tem extração filantrópica e forte apelo de natureza moral como podemos ver na adoção das chamadas políticas afirmativas. No fundo, a esquerda liberal afirma que, em condições iguais ou quase iguais, um filho da classe trabalhadora terá o mesmo ou ainda melhor desempenho que os filhos dos burgueses ou das classes médias endinheiradas (proprietárias ou não).

Ademais, no Brasil – um país de maioria miscigenada – a esquerda liberal aceita o vestibular e pretende introduzir no sistema meritocrático burguês pitadas de “justiça social” e algo de “reparação histórica” com o sistema de quotas de inspiração estadunidense. 

Ora, quem diz quota, diz vestibular!

A aceitação social da filantropia conta com a aprovação do moralismo por um lado e, da cumplicidade, por outro. A política reduzida à moral (políticas públicas compensatórias como horizonte da política) implica, necessariamente, a prática filantrópica mesmo quando aparece sob a forma de “políticas sociais”. A cumplicidade é mais sutil mas não menos cínica: o suposto que há que fazer algo aqui e agora para mitigar o sofrimento humano daqueles que são massacrados e considerados historicamente “excluídos”.

Nesse caso, não importa que apenas uma pequena parcela das vítimas do sistema seja contemplada com o sistema de quotas, pois mais importante tem sido a digestão moral da pobreza. No entanto, como sabemos, a ideologia deve prestar contas com a realidade. A filantropia praticada em larga escala pela esquerda liberal não se sustenta a partir de valores morais mas sobretudo porque alimenta interesses concretos.

Considere, por exemplo, a existência de cursinhos populares destinados a preparar os filhos de trabalhadores para uma disputa completamente desigual. Iniciativas semelhantes rendem clientes e votos para a esquerda liberal. Alimentam parlamentares e criam fidelidades muito semelhantes àquelas observadas no interior das igrejas evangélicas. A necessidade cria fidelidades! Portanto, esses cursinhos abundam, criam empregos, salvam algumas almas e, mais importante, alimentam o sistema do vestibular.

Não é produto do acaso que precisamente a emergência e sobretudo consolidação dos monopólios de educação superior ocoreram nos longos 14 anos dos governos petistas com algumas empresas cotizando na bolsa de valores à custa das enormes transferências de recursos públicos: Cogna, Ser Educacional, Yduqs, Bahema, Cruzeiro do Sul. Tudo em nome do social! Os grandes capitalistas não dormem no ponto e também manifestam, à sua maneira, alguma sensibilidade para a chamada “questão social”. Portanto, a apologia da “inclusão social” nos estreitos marcos do sistema de ensino atual, permite à esquerda liberal uma aliança objetiva com a direita liberal a despeito das restrições retóricas que a última pode fazer como recurso meramente ideológico. No limite, o filtro classista do vestibular sai não somente intacto
mas, inclusive, legitimado pela presença testemunhal de parte minúscula da classe trabalhadora (via sistema de quotas raciais e sociais).

Em setembro do ano passado, os bancos anunciaram sua contribuição para manter o vestibular com credenciais sociais. A USP anuncia com indisfarçável orgulho que empresas como Itaú, Santander, Deutsche Bank e inclusive a Dow Química aderiram ao programa de permanência da universidade contemplando mais de 270 estudantes no valor de R$ 800 mensais. Ademais, a universidade paulista acrescenta que o investimento total está estimado em R$ 10 milhões. Não é notável contribuição? O Itaú, para dar apenas um exemplo, investe pesado na compra de títulos públicos do Tesouro Nacional para os quais os sucessivos governos reservam centenas de bilhões todos os anos e transferem o custo para as classes populares por meio de políticas de austeridade. Assim, tanto o orçamento das universidades federais quanto dos Institutos Federais é sempre um cobertor curto e a expansão do sistema público quando ocorre o faz a conta gotas! Em 2022 a dívida interna superou os R$ 4 trilhões e os juros e amortizações consumiram nada menos do que R$ 1,879 trilhão, segundo os dados da Auditoria Cidadã da Dívida Pública. O benevolente Itaú faturou bilhões na dívida pública e no ano passado anunciou um lucro de R$ 30,7 bilhões (14,5% superior ao exercício anterior) enquanto destinou para a filantropia a “vultuosa” quantia de R$ 25 milhões destinada a permanência de alunos pretos, pardos e indígenas. Não é imensa a sensibilidade dos banqueiros?

Na Universidade Federal de Santa Catarina – assim como em todas as federais – sobram vagas, menos nos cursos que alimentam a ambição pequeno-burguesa dos profissionais liberais nos quais o teste da meritocracia é a compra do primeiro carro importado após a formatura. Nas ciências básicas, o deserto é enorme tal como manda o círculo de ferro dessa monstruosidade chamada subdesenvolvimento no qual seguimos afundando. Pouco importa: os liberais de direita indicam como única saída uma nova onda modernizadora que já se avizinha e nos condenará à exportação de carnes, ferro e petróleo cru. Os liberais de esquerda aceitam discretamente o rumo mas sustentam o moralismo rasteiro já condenado por Mandeville no início do século XVIII. Portanto, é preciso fazer algo – qualquer coisa! – aqui e agora para a classe trabalhadora ainda que represente tão somente uma detestável digestão moral da pobreza. Enquanto isso, os milhões de filhos da classe trabalhadora que gostariam de frequentar a universidade pública num sistema de acesso universal seguem esquecidos na vala comum do sofrimento humano. 

Revisão: Junia Zaidan

* Nildo Domingos Ouriques é professor titular do Departamento de Economia e Relaçoes Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA).