Pesquisadora entrevistou coordenadores de 17 das 21 cozinhas solidárias de Florianópolis para elaboração do projeto
“A nossa marmita não é só um prato de comida, de arroz e feijão. Ela é afeto, reduz danos. Para quem tem falta de tudo, o alimento é essencial. E comer é um ato político, né?”. A frase é do coordenador de uma Cozinha Solidária de Florianópolis e foi dita à nutricionista Luíza Todeschini Lucas durante sua Residência Multiprofissional em Saúde da Família da Universidade Federal de Santa Catarina (Remultisf/UFSC). A pesquisadora entrevistou os coordenadores de 17 das 21 cozinhas solidárias de Florianópolis, com o objetivo de averiguar as condições de funcionamento, tempo de atuação, número de voluntários e de refeições servidas em cada uma delas. Como mostra a declaração acima, essas cozinhas são importantes tanto no combate à fome como na promoção da cidadania.
O Trabalho de Conclusão de Residência (TCR) para a obtenção do título de Especialista em Saúde da Família de Luíza Todeschini Lucas – “Caracterização do funcionamento das Cozinhas Solidárias que atuam em Florianópolis/SC” – foi orientado por Elizabeth Nappi Côrrea, professora do Departamento de Nutrição e tutora na Remultisf/UFSC. Sua pesquisa evidencia que essas cozinhas, apesar de terem propósitos similares, apresentam características muito distintas: o tempo de atuação varia de pouco mais de um ano a 25 anos; o número de voluntários vai de três a 40; algumas servem refeições uma vez por mês, enquanto outras servem de uma a seis vezes por semana; o número de marmitas ofertadas por dia varia de 25 a 700.
Após defender o TCR, Luiza lançou, junto com sua orientadora, a cartilha “Cozinhas Solidárias em Florianópolis – conheça e saiba como ajudar”. O objetivo da publicação é valorizar esses projetos e divulgá-los para pessoas que queiram contribuir ou se voluntariar. “Esperamos que esta cartilha sirva como instrumento para reconhecer e divulgar o valioso trabalho realizado por esses grupos, contribuindo assim para o fortalecimento das Cozinhas Solidárias por meio do envolvimento de novos voluntários e doações. O nosso desejo é possibilitar uma alimentação de qualidade para aqueles que mais necessitam”, escreveram as autoras.
Cozinhas Solidárias, de acordo com a cartilha, são espaços dedicados à produção de refeições sem fins lucrativos, destinadas a pessoas em situação de vulnerabilidade social. São organizadas por entidades, grupos ou coletivos da sociedade civil e surgem de forma independente, sem o respaldo do poder público. O objetivo é combater a insegurança alimentar e nutricional em suas comunidades.
Luíza formou-se em Nutrição pela UFSC em 2021. Atualmente, faz parte da equipe técnica do Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição do Escolar (Cecane/UFSC), cujo objetivo é assessorar municípios em Santa Catarina e desenvolver ações relacionadas ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). A Residência, que a nutricionista concluiu em fevereiro deste ano, é uma especialização voltada para profissionais de saúde que desejam atuar no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente no âmbito da atenção primária à saúde e da Estratégia Saúde da Família (ESF) e equipe multidisciplinar.
“Durante a graduação, tive a oportunidade de participar de projetos de extensão e de contar com excelentes professores de Saúde Pública. O desejo de fazer residência em Saúde da Família surgiu no final do curso, durante um estágio em um Centro de Saúde, onde percebi minha paixão por esse campo e a possibilidade de ajudar quem mais precisa. O tema do meu Trabalho de Conclusão de Residência surgiu pela experiência de acompanhar famílias em situação de insegurança alimentar, tanto em consultas individuais quanto através dos relatos de outros profissionais. Com a ajuda do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de Florianópolis (Comseas), foi possível mapear as Cozinhas Solidárias, uma das estratégias para melhorar o acesso dessas pessoas a alimentos de qualidade”, contou a pesquisadora.
A importância das Cozinhas Solidárias
A relevância das cozinhas solidárias ficou ainda mais evidente durante a pandemia de coronavírus. Em 2022, o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), mostrou que mais da metade dos brasileiros passou por algum grau de insegurança alimentar, enquanto 33,1 milhões passaram fome.
O trabalho de Luíza partiu do entendimento de que o papel das Cozinhas Solidárias no combate à fome é necessário e que os projetos de Florianópolis precisam ser reconhecidos e apoiados pela comunidade e pelo poder público para serem fortalecidos. Foram identificadas 21 Cozinhas Solidárias, mas duas optaram por não participar da pesquisa. A nutricionista não conseguiu realizar a entrevista em outras duas unidades, por indisponibilidade de horários dos responsáveis. Ao todo, o estudo foi realizado em 17 cozinhas.
A nutricionista destaca, em seu trabalho, que as Cozinhas Solidárias são também um espaço de valorização da identidade cultural e de saberes ancestrais, com a oferta de alimentos tradicionais, o que contribui para preservar culturas alimentares e a transmissão de ensinamentos para novas gerações. Mas isso também depende das condições de funcionamento de cada cozinha, uma vez que os cardápios são geralmente estruturados a partir das doações que recebem, que chegam em forma de alimento ou recursos financeiros – a maioria de pessoa física ou dos próprios voluntários.
O trabalho nas cozinhas, para os voluntários, é “muitas vezes exaustivo, mas sempre recompensador e gratificante, pela sensação de responsabilidade social em benefício da comunidade”. Luíza cita um estudo feito com trabalhadores de uma cozinha solidária no Líbano, em que os participantes relataram serem motivados pelo ato altruísta, pela oportunidade de autodesenvolvimento e sentimento de autoestima. “As cozinhas podem desempenhar um papel no empoderamento e no desenvolvimento das comunidades locais, para além da assistência alimentar imediata”, afirma a pesquisadora.
O cardápio
A pesquisadora observou que algumas cozinhas costumam oferecer os mesmos pratos, como sopa ou risoto, por exemplo. Outras oferecem refeições mais completas, que podem incluir arroz, feijão, legumes, farofa, macarrão, ovo, frango, salada crua, frutas, sucos e, em alguns casos, até sobremesa.
Duas das cozinhas que Luíza analisou servem refeições vegetarianas e outras três afirmaram que buscam, cada vez mais, reduzir a quantidade de alimentos de origem animal no preparo das marmitas. “Já se vê o interesse do público neste tipo de refeição, pensando na saúde, custos, meio ambiente e também para que seja uma refeição inclusiva a todos os públicos. Diversos estudos associam efeitos positivos na maior utilização de produtos de origem vegetal e restrição de produtos de origem animal, os quais estão associados ao risco aumentado de doenças crônicas e degenerativas como diabetes, obesidade, hipertensão e alguns tipos de câncer. No Brasil, o Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde (MS), desencoraja o consumo em excesso de proteínas animais e incentiva o aumento de alimentos vegetais”, observa a pesquisadora.
Desafios
Entre as dificuldades que as cozinhas enfrentam, identificadas na pesquisa, estão a falta de recursos financeiros e de doações de alimentos; a escassez de recursos humanos, uma vez que é difícil manter os voluntários; a questão estrutural de espaço físico e falta de equipamentos adequados, o que muitas vezes impossibilita a produção de refeições em maior quantidade e a aquisição de grandes volumes de doações de alimentos. A coordenadora de uma das cozinhas lamentou: “Eu tenho um sonho de poder fornecer duas refeições por dia, de ter um espaço próprio, uma cozinha grande, onde não precisaríamos ficar cuidando do horário.” A pesquisadora explica que muitas cozinhas atuam em espaços emprestados, o que também torna difícil manter os padrões exigidos pela Vigilância Sanitária.
Os coordenadores das cozinhas destacaram, durante as entrevistas, “a falta de apoio público para potencializar esses espaços dentro das comunidades, funcionando como forma de programa assistencial na garantia do direito à alimentação e na geração de renda”. A formação de mão de obra qualificada e a remuneração dos voluntários também estão entre as demandas. Um dos coordenadores afirmou: “Deveria haver equipamentos públicos suficientes e de qualidade para atender a população, para assumir essa tarefa.”
“As Cozinhas Solidárias possuem singularidades e aspectos variados, característicos do seu território, não podendo ser classificadas igualmente, devem ser analisadas a partir do seu contexto social e da comunidade na qual estão inseridas. É necessário maior visibilidade, investimentos e estudos para a potencialização das Cozinhas Solidárias, visto que elas têm possibilidade de serem uma eficiente intervenção no combate à fome, melhorando o desenvolvimento e empoderamento do território e de sua comunidade”, defendeu a pesquisadora em seu trabalho.
::: A cartilha está disponível aqui
Fonte: Notícias UFSC