Sobre responsabilidade e julgamento

*Por Adriano Duarte, Camilo Buss Araújo, Glaucia Dias da Costa e Karine Simoni

“Concorrência desleal” é um filme de Ettore Scola, lançado no ano de 2000, sobre dois alfaiates, Umberto e Leone, cujas lojas ficavam na mesma rua. Apesar de serem concorrentes, os alfaiates mantinham uma relação cordial, tratando-se com urbanidade e respeito. Seus filhos eram amigos e frequentavam a mesma escola; o ano era 1938, dezesseis anos depois da chegada dos fascistas ao poder na Itália. Por produzir roupas mais baratas, Leone começou a vender mais do que seu concorrente e o clima amigável entre os alfaiates começou a azedar. A concorrência entre eles se acirrou e beirou a violência física. Um dia, numa discussão, Umberto atacou o rival acusando-o de ser judeu. A cena foi presenciada pela política fascista que prendeu Leone, encerrando o conflito dos alfaiates. Enfim, Umberto se tornou o único alfaiate da rua.

“Lacombe Lucien” é um filme de Louis Male, lançado em 1974, que conta a história do jovem que dá nome ao filme. Ele tinha 13 anos quando os alemães invadiram a França e capturaram seu pai. De família pobre, Lucien trabalhava como faxineiro em um hospital. Estudante relapso, mas exímio caçador, sonhava em entrar para a resistência para honrar seu pai. Para tanto, recorreu a um antigo professor, que recusou sua ajuda como voluntário, sob a justificativa de que ele era muito jovem. Um dia, o pneu da bicicleta de Lucien furou e ele pediu ajuda na sede da milícia francesa que colaborava com a Gestapo. Lá, os agentes da Gestapo perguntaram a Lucien se conhecia alguém da resistência e ele entregou o nome de seu antigo professor, que foi preso e torturado. Quase por acidente, o jovem começou a trabalhar para e com os nazistas, participando de execuções, torturas e extorsões, até ser preso em outubro de 1944 por membros da resistência. Nem o alfaiate Umberto e nem Lucien eram nazistas, fascistas ou antissemitas. Mas é inescapável classificá-los como colaboracionistas. É exatamente a ambiguidade presente na atitude de ambos que torna os seus destinos perturbadores.

Assim, é perfeitamente compreensível que pessoas que conviveram com João David Ferreira Lima se sintam tão incomodadas com as informações reveladas pela Comissão Memória e Verdade da UFSC. É evidente que quem colaborava com os órgãos de repressão não registrava essas informações em seus currículos, tampouco as alardeavam pelos jornais. É bastante plausível supor que mesmo pessoas muito próximas do ex-reitor sequer tivessem conhecimento dessa colaboração. Mas ela aconteceu. Nós não conhecemos João David Ferreira Lima, não sabemos se era um apoiador convicto da ditadura, mas sabemos que o trabalho de investigação feito pela Comissão Memória e Verdade obedeceu a critérios fundamentais do ofício de historiador. Existem documentos e relatos incontornáveis de que ele entregou professores e estudantes para a polícia durante o regime de exceção. Talvez nunca saibamos as suas razões para fazer isso, mas a verdade é que o fez, portanto, foi um colaborador do regime.

Exatamente por isso estranhamos o argumento defendido por alguns de que “essa era a ordem jurídica daquele tempo e que ele cumpriu ordens.” É como se nos dissessem que ele só poderia ser julgado por aquela ordem jurídica e que as coisas do passado devem ficar lá, longe dos olhares do presente. Portanto, os atos praticados durante a ditadura não poderão ser questionados nunca, uma vez que aquela ordem, felizmente, se encerrou. Que essa alegação seja apresentada por um advogado é ainda mais estarrecedor, afinal, o que seria da justiça nessa lógica? Seria o fim do Direito? O argumento de que o ex-reitor apenas cumpria ordens é a expressão mais singela da “banalidade do mal”. Adolf Eichmann recorreu a esse argumento quando foi julgado em 1961. Ele se apresentou como um simples e banal servidor que muito diligentemente cumpria ordens. Como nos ensinou Hannah Arendt, o mal não é absoluto, ele é praticado, reiteradamente, por gente comum, banal, bons pais de família, bons maridos, e gestores diligentes.

Desse modo, aqui cabe uma reflexão sobre a ausência de pensamento crítico e responsabilidade moral em atos dessa natureza. Mesmo em situações limítrofes, como a vivida durante a ditadura militar, a Responsabilidade e o Discernimento não podem ser contornados. Não importa se os nomes entregues à polícia e aos agentes da repressão pelo ex-reitor não resultaram, naquele momento, em mortes ou torturas. A verdade é que, ao serem entregues os nomes, tudo poderia ter acontecido: da tortura ao desaparecimento. A “banalidade do mal”, portanto, reside exatamente na incapacidade de julgar, no abandono da reflexão e da aptidão, muito humana, de se colocar no lugar do outro, considerando as consequências às quais esse outro será exposto. Como dizia Arendt: “em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime”. Portanto, a responsabilidade individual sob uma ditadura não pode, de modo algum, ser transferida para o regime de exceção.

O debate que ora se trava em torno do nome do campus da UFSC da Trindade não pode ser isolado de outros movimentos semelhantes no Brasil e no mundo: como o incêndio da estátua do bandeirante Borba Gato em São Paulo, a retirada do título de doutor honoris causa entregue a Emilio Garrastazu Medici pelas universidades federais de Pelotas (UFPel), do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Rio de Janeiro (UERJ), a derrubada da estátua de Edward Calston, o traficante de escravos de Bristol, e muito mais. A questão óbvia é: o passado nunca passa! E é justamente porque ele repercute nos nossos dias, que o presente – e o fazer historiográfico – segue reiteradamente lançando novas perguntas a ele. Não se trata de promover o cancelamento de autoridades, mas a história é, por excelência, uma disciplina revisionista. As revisões acontecem sempre que venham à luz novos documentos, novas informações, novas fontes; isso não muda o caráter ontológico do passado, mas muda nossas interpretações e nossa visão sobre ele. Por isso, a História e o Direto são dinâmicos, porque são repostas ao mundo em que vivemos hoje. E é a partir de hoje, da moralidade que nos orienta aqui e agora, que nós devemos discutir qual o significado de manter as homenagens feitas a bandeirantes, escravocratas, caçadores de índios e colaboradores de ditaduras. O passado – reiteramos – não é um vestígio morto, mas uma dimensão ativa que exige revisitação constante. Monumentos, títulos, nomes de ruas e placas comemorativas são formas de dizer o que valorizamos como sociedade. Por isso, revisitar essas homenagens significa assumir a coragem de encará-la por inteiro, com suas sombras e suas lições. Nenhum nome, em nenhuma praça, nenhuma rua pode homenagear aqueles que, um dia, não compreenderam o sentido da pluralidade humana, e fugiram à sua responsabilidade recusando-se a fazer uso da reflexão e do julgamento.

*Adriano Duarte é historiador e professor no departamento de História (HST/CFH); Camilo Buss Araújo e Glaucia Dias Costa são historiadores e docentes de História do Colégio de Aplicação (CA); Karine Simoni é historiadora e professora no departamento de Língua e Literatura Estrangeiras (DLLE/CCE)

Artigo recebido às 08h03 do dia 16 de junho de 2025 e publicado às 08h53 do dia 16 de junho de 2025