Reinação do autoengano, da ingenuidade subcapitalista e do irracionalismo religioso, o pensamento mágico prospera em todos os poros de nossa sociedade.
Os governantes e nossas elites incentivam como podem a ampliação dessa sociabilidade ilusória. Afinal, é o ocultamento da realidade que permite a fixação da ordem existente, consagrando o Brasil como modelo da desigualdade e das injustiças sociais.
Deveria ser o melhor dos mundos para animar o robusto desenvolvimento do que Weber chamou de “ciências do espírito”, a tríade formada por sociologia, antropologia e ciência política.
No entanto, focada apenas a ciência da sociedade, a sociologia, é uma chocante ironia que tenhamos observado a obrigatoriedade de sua inclusão nos currículos do ensino médio exatamente quando é ciência que experimenta a sua maior crise, não apenas como um sistema de conhecimento, mas também como uma instituição social e uma profissão.
Onde estão os cientistas sociais que demarcaram os debates públicos em anos passados? Por que se refugiaram no comodismo das universidades públicas e se conformaram à domesticação de seu papel crítico? Por que se confinam, cada vez mais, aos estudos hiperespecializados, ao hermetismo narcísico ou à produção estéril que se repete em guetos de autoexaltação?
É um fenômeno apenas brasileiro? Estaria perdendo a sociologia a sua relevância, a ponto de poder ser em breve dispensada? Como entender que essa ameaça ocorra exatamente quando se multiplicam os seus praticantes e os cursos existentes, e cresce o número de sociólogos doutores?
Os impasses atuais da sociologia são muito distintos dos do século 19, quando surgiu no firmamento científico, estimulada pela luta teórica entre positivistas e neokantianos, estes defendendo a bifurcação entre ciências naturais e ciências humanas.
Essa disputa constituiu o pensamento clássico que foi sendo abandonado recentemente, sobretudo a partir dos anos 80, dando lugar à anarquia do relativismo cultural e às subteorias de um conhecimento fragmentado. A tradição clássica foi assim decomposta e superada por um pensamento ideológico centrado em diversos códigos obscuros e distantes de problemáticas sociais.
No caso brasileiro, esse refluxo foi mais acentuado em função da partidarização e do militantismo que tem sido corriqueiros entre nós, sobretudo nos anos pós-democratização.
Assim, parece equivocado o diagnóstico do influente sociólogo Anthony Giddens, sugerindo que, pelo contrário, a sociologia seria mais forte atualmente, porque as ciências sociais já fariam parte do imaginário público, que as toma como dadas e parte do senso comum.
A sociologia surgiu como a leitura crítica da modernidade, mas a sua revisão contemporânea e a traição de sua história depositam-na em um vácuo ontológico.
O declínio correspondente da modernidade pode ser atribuído a diversos fatores, entre os quais a perda de soberania do Estado-nação, o impacto das revoluções democráticas, sobretudo as operadas no antigo bloco soviético, a emergência de novas concepções sobre as relações entre sociedade e natureza e, também, a crescente importância do conhecimento na estruturação social.
Se examinado apenas um desses aspectos, as revoluções sempre foram decisivas para a produção de novos sistemas de conhecimento, inclusive a sociologia. Mas aqueles modelos gerados no contexto da Guerra Fria não mais repercutem na vida social, nem o liberalismo ocidental, nem a social-democracia, nem o marxismo, nenhum deles bem-sucedido em oferecer fundamentos para um conhecimento sociológico consistente.
Assim nasceu a profunda crise atual dessa ciência, a qual tem sua origem na relação de estranhamento da sociologia com a explicação de seu objeto, a sociedade.
Na tradição de “A Imaginação Sociológica”, de Wright Mills, é urgente a recuperação da capacidade analítica da sociologia, confrontando todas as formas de poder, de dominação e de produção das hierarquias com as suas manifestações na ordem social. Se assim não for, ela poderá se tornar descartável, pois impotente para interpretar os temas sociais.
No Brasil, a despartidarização da sociologia, sem significar a sua despolitização e, menos ainda, a sua neutralidade, é outra urgência para ela reerguer-se como ciência.
É preciso localizar a possibilidade de torná-la relativamente autônoma, mas igualmente capaz de responder à sociedade e suas necessidades de análise dos processos sociais, assim retornando ao seu papel de consciência crítica dos arranjos societários.
Zander Navarro, 58, sociólogo, é professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador visitante do Instituto de Estudos sobre o Desenvolvimento da Universidade de Sussex (Inglaterra).