Com menor acesso à saúde e maior exposição à violência, pessoas negras têm envelhecimento mais difícil do que pessoas brancas, aponta relatório
Envelhecer não é fácil para boa parte da população brasileira, ainda mais para quem é negro. O racismo deixa marcas e suas consequências, por vezes, não conseguem ser evitadas ao longo da vida. Ariosvaldo Ribeiro de Sousa sabe muito bem disso. Hoje, com 56 anos, ele entende que mesmo saindo da sua cidade natal, em Vitória da Conquista, no sudoeste da Bahia, o racismo nunca deixou de segui-lo pelos espaços que foi ocupando à medida que foi envelhecendo.
“Eu nunca tive oportunidade de aprender o básico. Não tenho estudo, nasci na periferia. Achei que minha cor nunca ia interferir nas oportunidades que apareceram. Mas sei que hoje minha filha também não vai escapar disso, porque é negra também”, conta ele, orgulhoso por ser pai de Livia Lemos, estudante de Jornalismo na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), e primeira da família a ingressar em uma universidade.
Atualmente Sousa é trabalhador autônomo, mas anos atrás atuou como pintor. “Quando eu trabalhava em casa de pessoas ricas, eu sentia que era maltratado por conta da cor, mas como não tenho estudo, só escutava e ficava quieto”, lembra. Após tantos anos passando por essas situações, ele acredita que o racismo não vai acabar. “A cor parda e a cor preta não vão escapar. Em qualquer lugar vai ter racismo, na faculdade, no shopping, na rua. Mas é que nem eu digo à minha filha: é preciso não desistir!”
O que Sousa e tantos outros sentem na pele foi traduzido em números por uma pesquisa intitulada Envelhecimento e Desigualdades Raciais, realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em parceria com o Itaú Viver Mais. Os resultados da pesquisa confirmam que a velhice das pessoas negras no Brasil é o somatório das desigualdades impostas pelo racismo ao longo da vida, como a baixa escolaridade, as dificuldades de acesso à saúde e lazer, exposição à violência, entre outros indicadores.
Envelhecer como direito
Em debate realizado no lançamento da pesquisa, Márcia Lima, professora de sociologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, afirmou que desde a infância já há uma distinta percepção de velhice entre as pessoas brancas e negras. Ela, que também é secretária nacional de Políticas de Ações Afirmativas e Combate e Superação ao Racismo, do Ministério da Igualdade Racial, exemplificou isso citando o famoso seriado infantil Sítio do Picapau Amarelo. “Temos duas velhices: a da Dona Benta, a vovó que acolhe, e a da Tia Anastácia, a que está lá para servir e não tem história, não tem família.”
“A nossa população negra começa a ser superior à população branca no início da vida. Mas, a partir dos 40 anos, essa população vai morrendo de maneira mais acentuada, seja pela violência policial ou pelos problemas de saúde”, destaca Huri Paz, um dos autores do estudo e pesquisador do núcleo AFRO/Cebrap. “Alcançar a velhice, sobretudo no caso da população negra, é vencer processos complexos de discriminação. No Brasil, há uma tendência de que pessoas negras morram antes mesmo de envelhecer, porque o racismo não permite a longevidade dessas pessoas”, acrescenta ele, que também é mestrando em sociologia pela FFLCH.
Dados do IBGE indicam que em 2030 o número de idosos superará o número de jovens no País. Garantir um envelhecimento digno está previsto em lei. De acordo com o artigo 9º da Lei 10.741, de 2003, é obrigação do Estado garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade.
A pesquisa apresenta um caráter político, ao mostrar de forma científica argumentos que contestam o senso comum de associar a velhice com inatividade, ou invalidez. “Esse estudo nos ajuda a quebrar esses estereótipos de que quando a gente chega em idade mais avançada, nossas capacidades criativas diminuem”, diz Huri ao Jornal da USP. “Ou que necessariamente precisaremos de apoio financeiro, emocional e físico. Precisamos defender o direito de um envelhecimento autônomo, saudável e igual para todas as pessoas”, reforça e defende a necessidade de políticas públicas que assegurem o direito de crianças negras envelhecerem.
Para o pesquisador, além de sofrerem diretamente com os impactos do racismo sistemático, negras e negros brasileiros também encaram mais desafios para envelhecer bem. “Existe uma maior incidência de diabete, hipertensão e problemas cardíacos em homens negros, que na maioria das vezes não conseguem o tratamento adequado nos sistemas públicos de saúde por conta da alta demanda”, explica Huri. “Além disso, o homicídio e as violências nas favelas – que atingem especificamente ainda mais homens negros – revelam que a população negra morre antes de conseguir envelhecer”, acrescenta. “Nós temos uma sociedade que não consegue dar as mesmas garantias de direitos para pessoas brancas e pessoas negras”, completa.
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