A ação política e o voto

Para muitos, 1789 inicia um novo ciclo civilizatório para a humanidade, quando os revolucionários franceses iniciaram uma nova fase na organização da vida política nas sociedades. O ancien régimen cedia espaço ao espírito republicano e, com ele, o império das leis sobre a vontade despótica dos soberanos. O pano de fundo de toda esta transformação constitua-se em colocar no centro da vida política a vontade popular, expressa pelo voto universal. 

Desde então a história das instituições políticas passou a ter um elemento fundamental para sua legitimação: a maior ou menor proporção em que os citoyens contribuíam para definir, com seu voto, aquilo que Rousseau chamara de volonté générale. Incontáveis modalidades de consulta ao entendimento do povo foram, então, implementadas em todos os cantos do planeta. Estas diferentes maneiras de consultar a vontade popular buscaram refletir as condições históricas, econômicas, culturais específicas de cada país, de cada nação, não havendo, portanto, uma receita universalmente válida como a mais eficaz para a aludida aferição.

É preciso que se diga, também, que se esta conquista foi fruto de uma das mais importantes revoluções da história da humanidade, ela ainda precisou ser aperfeiçoada. Em muitos lugares só recentemente mulheres, negros e outros grupos sociais conquistaram o direito de votar, e mais ainda, de serem eleitos. Todas essas conquistas foram o resultado da luta, da organização e mobilização de multidões, não sem episódios trágicos, mártires, sofrimentos, etc. Este tem sido o “preço da liberdade” que a humanidade tem pagado.

Já no Brasil de tortuosa construção democrática, logrou-se, após a ditadura militar, re-estabelecer o voto direto às eleições presidenciais, após a memorável campanha das diretas-já. Temos aqui o voto universal, extensivo a analfabetos e facultativo para meninos e meninas de idade superior a 16 anos. 

Nesse processo de organização e luta, os trabalhadores todos (de operários a cientistas, no ocidente ou oriente) universalizaram uma forma de organização, debate e deliberação: a Assembléia Geral. Dentre os vários motivos para a escolha desta prática, o primordial é que a AG permite o debate, a argumentação, a troca de idéias, o confronto de diferentes táticas para um mesmo fim: a melhoria de vida dos trabalhadores. Portanto, esta prática democrática interessa a quem vive de seu trabalho, e não a quem vive de consultorias, de resultados de empresas alojadas dentro da Universidade. A esses interessa a “normalidade”, ou a inércia, “deixar tudo como está”. E para tanto, nada melhor do que mecanismos de decisão que suprimam o debate, em que as pessoas se manifestem por um voto em urna, ou melhor, solitariamente pelo computador de sua sala, sem a presença na AG.

Outro problema é a baixa participação, nossas AGs andam escassas de público. Quais as razões? Pensamos não haver uma, mas uma combinação de fatores, entre os quais: uma carga de trabalho por vezes sobre-humana, o imobilismo cético ao qual a classe política brasileira parece nos empurrar (não vale a pena, são todos iguais, nada vai mudar etc.), crise geral nos movimentos sociais, o sindical em particular. 

Ante este fato real alguns professores sindicalizados, que como nós, obtiveram importantes vitórias contra sucessivos governos através de nossas mobilizações, vêm propondo a utilização da tecnologia para ampliar a participação nas decisões do sindicato através de votações eletrônicas.

O Brasil é o país mais avançado do mundo em coleta de votos: temos o voto eletrônico num sistema nacionalmente interligado que possibilita o conhecimento de resultados eleitorais em todo o território escassas horas após o encerramento da coleta de votos. Só que isto em nada aperfeiçoou a qualidade de nossa representação política, se é que não a piorou. Os esquemas indecentes de caixa dois, o voto de cabresto, a cesta básica, a dentadura e o saco de cimento, continuam falando alto nas eleições brasileiras. Portanto o argumento tecnológico, per si, não se sustenta.

Nos parece muito saudável a preocupação em lastrear com a máxima legitimidade possível nossas decisões políticas, especialmente as mais sensíveis. No entanto é necessário que pensemos no voto como sendo o momento final de uma construção política coletiva que não pode prescindir do debate, da troca de idéias e impressões, da interpenetração de opiniões contrárias na busca da construção de consensos intersubjetivos. Aí reside a essência da ação política e apenas ela pode dar a qualidade que todos desejamos para nossos processos decisórios.

Não se trata de nenhuma modalidade de obscurantismo tecnológico: o argumento é que nada substitui o argumento, com perdão do trocadilho. Debates através de listas eletrônicas, murais na página da Apufsc, bem como boletins eletrônicos, por exemplo, podem se constituir num elemento adicional desta construção. A troca de correspondências eletrônicas, desde que resguardados o respeito, a urbanidade e o espírito de construção também podem se constituir em ferramentas importantes. Mas não substituem o debate direto e o momento crítico da decisão COLETIVA.

Pensemos assim em como assegurar uma maior participação nas decisões de nossos colegas indissociada do debate, do saudável confronto de racionalidades. Podemos imaginar AGs mais elásticas que propiciem mais de uma alternativa de participação (digamos hora e local alternativos, mais de uma sessão), pensemos AGs em dias e horários menos “carregados”.

A universidade brasileira intensificou, em muito, fontes alternativas de financiamento nos últimos anos o que dotou muitos professores da gestão de recursos financeiros abundantes. Ao lado disto chegam informações (nestas reuniões nacionais que participamos no Andes-SN) de pressões e chantagens exercidas em outras universidades por parte destes professores gestores. Em outras palavras, temos em alguns cantos deste país a reprodução de sofisticadas modalidades de cesta básica, dentadura e saco de cimento. 

A tecnologia é bem vinda e pode nos auxiliar, mas jamais poderá substituir a engenharia do argumento. De prático deste texto fica uma noção: da construção política coletiva participa, com o voto, o cidadão universitário.