O mérito e o ingresso na universidade

Discussões recentes neste jornal colocam novamente em foco antigas questões concernentes à universidade e seus compromissos políticos e sociais. Neste pequeno artigo gostaria apenas de tangenciar um ponto decorrente da discussão sobre o caráter político da universidade e das discussões que a ela se referem. Esclareço desde já que discordo dos defensores de uma suposta neutralidade política na vida acadêmica. Concepções do papel dos cidadãos na vida social, dentro e fora da universidade, inevitavelmente se caracterizam como ideológicas num sentido amplo. Mas esse ponto de vista precisa de uma medida de prudência: é um equívoco tratar as questões universitárias do mesmo modo que as questões da sociedade em geral.

Defendo a idéia de que a universidade não é, pura e simplesmente, uma maquete da sociedade. Melhor dizendo, os conceitos sócio-políticos que normalmente usamos para entender e discutir a sociedade não devem ser automática e irrefletidamente aplicados para entender e discutir a universidade. Isso não quer dizer que esta última deva ser vista como uma parte destacada da primeira, uma ilha completamente alheia à situação geral da sociedade. Mas precisamos ter cuidado aqui. A universidade, obviamente uma parte integrante da sociedade, possui, contudo, certas peculiaridades que não podem ser desprezadas numa discussão sobre os aspectos políticos a ela inerentes. Alguns exemplos são oportunos: o caráter público da educação é às vezes utilizado para sustentar uma visão mais aberta e democrática da universidade. Mas o que exatamente queremos dizer com “público” neste contexto? Não pode ser o mesmo que “praça pública”, “hospital público”, etc. Obviamente, o acesso à universidade é, e deve ser, distinto do acesso a uma praça ou a um hospital. Para entrar na universidade, o indivíduo deve fazer mais do que apenas manifestar interesse num curso qualquer e entrar na sala de aula, como se atravessa uma praçad+ é necessário que ele se submeta a um exame de ingresso e, assim, mostrar que está preparado para assimilar os conteúdos que lhe serão apresentados na universidade. 

Do mesmo modo, tal como o conceito de “público”, o de “democracia” não pode ser automaticamente aplicado à universidade sem que se esclareça a quê esse conceito se refere. O caráter democrático do ensino público deve ser entendido como “chance igual para todos”, mas isso não nos autoriza a aplicar o conceito de democracia na universidade tal qual o aplicamos na descrição da sociedade. Melhor dizendo, todos têm direito ao ensino público de terceiro grau, mas isso não significa que todos devam ser matriculados na universidade pelo simples princípio democrático. Devemos oferecer chances desde que isso não implique em aprovar um candidato – que se deu mal num processo seletivo qualquer – só porque ele provém de um curso fraco, ou de uma classe desprivilegiada. Seria demagógico e não pedagógico atender às expectativas de cidadãos despreparados para o conhecimento.

Poder-se-ia imaginar uma réplica a essa posição que é como se segue: a universidade também tem por missão oferecer meios para que os cidadãos melhorem seus conhecimentos e desenvolvam suas capacidades a fim de realizarem seus sonhos, independente de seu gênero, religião, raça, situação sócio-econômica, opção sexual, etc. Tal princípio, a meu ver, é válido e pode ser seguido mediante oferta de mais cursos de extensão, como cursos de especialização lato sensu gratuitos e de qualidade, ou mesmo ciclos de conferências sobre temas de interesse geral da opinião pública. Creio, porém, que nos demais cursos, isto é, nas graduações, mestrados e doutorados, que estão mais diretamente ligados à produção de conhecimentos e envolvem disputas acirradas de vagas, o rigor e a excelência devem ser vistos como critérios não-negociáveis. Nesses casos, o cidadão tem de mostrar que faz jus à oportunidade que se lhe apresenta e que ele não está tirando a chance de outro cidadão, este sim preparado enquanto ele não. Em outras palavras, o princípio democrático da chance para todos na universidade deve andar de mãos dadas com o princípio ou o ideal do mérito e da excelência.

Uma outra réplica ao meu ponto de vista pode ser pensada neste momento. Se levarmos em conta que normalmente os indivíduos têm chances diferentes para se aperfeiçoarem em suas vidas, o ideal do mérito parece injusto. Melhor dizendo, cidadãos oriundos de classes sociais menos privilegiadas e/ou discriminados – seja por raça, credo, etc. – não tiveram as mesmas chances que os cidadãos de classes mais privilegiadas que sofreram pouca ou nenhuma discriminação. Logo, aplicar o critério da excelência e do mérito acadêmico significa reproduzir e perpetuar as distorções presentes na sociedade. E se assim é, não estaríamos, a princípio, cumprindo a vocação social da universidade. Poder-se-ia até dizer que os recursos públicos não estariam sendo aplicados para favorecer as classes menos privilegiadas – o que é de se esperar do Estado –d+ antes, tais recursos estariam sendo usados para perpetuar a discriminação social. Nesse sentido, o critério do mérito seria antípoda ao da vocação social da universidade.

Este é um argumento interessante e reflete muito bem as chamadas “ações afirmativas”, isto é, as políticas destinadas à inclusão social. Creio, porém, que essa maneira de pensar é mais um exemplo de uma aplicação sem ressalvas, nas discussões sobre a universidade, de conceitos usualmente aplicados na compreensão da sociedade. Em primeiro lugar, aceitar um candidato despreparado é deixar de zelar pela qualidade do futuro profissional que estaremos introduzindo no mercado de trabalhod+ mais ainda, é deixar de realizar uma das vocações mais importantes da universidade, qual seja, a de melhorar a sociedade em que vivemos através da educação adequada e de qualidade. Trata-se de gerir com critérios rigorosos os recursos que, estes sim, são públicos. Além disso, a universidade não deve “tapar os buracos” do ensino básicod+ ela deve pressupor os conhecimentos obtidos pelo aluno nessa etapa educacional e, com base neles, encorajá-lo a ir além, a superar suas limitações. Atenuar o rigor nos critérios, seja para o ingresso, seja a finalização do curso, é perpetuar as más condições do ensino básico, e o despreparo dos professores é apenas uma delas. Aceitar na universidade um aluno sem conhecimentos básicos, nas mais diversas áreas do conhecimento, e aprová-lo sistematicamente nas disciplinas – por simpatia, ações afirmativas e congêneres – é prestar um desserviço à sociedade.

Em segundo lugar, as distorções sociais são tão profundas que ações afirmativas se configuram mais como paliativos do que como soluções reais. As injustiças sociais só serão devidamente corrigidas quando o governo aumentar – a um patamar aceitável – o número de vagas a estudantes, o repasse de recursos, as vagas para concurso público de professores e funcionários técnico-administrativos, o investimento em laboratórios e bibliotecas, etc. Essas decisões também passam, sem dúvida, pelo grau de mobilização da comunidade universitária, que deve ser organizada a ponto de se transformar num instrumento efetivo de reivindicações políticas. 

Finalmente, é importante destacar duas possíveis conseqüências preocupantes das ações afirmativas na universidade. Primeiro, ela pode estimular o paternalismo. Aprovar, por exemplo, um candidato que não foi bem nas provas, porque ele não teve as mesmas chances que outros candidatos – seja por sua origem humilde, ou cor da pele, etc. – é dar-lhe a ilusão da competência, além de produzir no professor a falsa sensação de engajamento político. Segundo, as ações afirmativas podem perpetuar as distorções sociais. Na verdade, por meio delas a ordem social injusta não é alteradad+ o que se faz é apenas uma pequena abertura no acesso a certos espaços, como o universitário. Não se trata de uma conquista plena de direitos sociais, mas sim de uma fachada, uma paródia de concessão.