Paralisia cerebral

Thiago fez quatro vestibulares na UFSC (de 2004 a 2008), e não passou. Neste meio tempo tem cursado “disciplinas isoladas”, todas do curso de Agronomia, obtendo aprovação com notas,  em sua maioria, igual ou acima de 7,0,   através de avaliações acompanhadas e/ou realizadas  pelos próprios  professores. No dia 8 de Abril deste ano o Colegiado de Curso da Agronomia se reuniu e decidiu negar ao Thiago a possibilidade de inscrever-se em duas disciplinas no semestre de 2008/1 por entender que ele já havia extrapolado as 500 horas de disciplinas isoladas permitidas pelo estatuto da universidade. 

É preciso em primeiro lugar esclarecer que Thiago tem um quadro chamado pela medicina de paralisia cerebral. Longe de indicar uma paralisia total do cérebro, que,  aliás,  funciona muito bem para pensar, compreender e aprender, como demonstram suas notas nas disciplinas cursadas e o seu histórico escolar no Colégio de Aplicação da UFSC. Durante o parto, Thiago ficou sem oxigenação e isso afetou uma parte do seu cérebro. Esta parte afetada é responsável por sua coordenação motora. Isso significa que Thiago pensa, sente, aprende, escuta, vê, elabora , analisa, tem memória, mas, embora tenha desenvolvido a capacidade de ficar sentado com a cabeça erguida, controlando muitos dos movimentos involuntários dos braços e pernas e da cabeça e do tronco, ele não consegue andar, falar, escrever ou controlar objetos com as mãos. Sua comunicação é feita através de comunicação alternativa usando principalmente  movimentos da cabeça para resposta de “sim” e “não”, mas também  olhares  para determinados lados e lugares convencionados com sua família e amigos. E também através do alfabeto. Falando o alfabeto de A a Z, ou mostrando em uma prancheta, ele indica as letras que formam as palavras e  frases que quer dizer. 

Isso limita muito a vida do Thiago, e envolveu sua família em uma longa maratona que, se incluiu médicos, fisioterapeutas, fonoaudiólogas, também recorreu a professoras e professores, amigos, bolsistas, colegas. O fato é que, em 2004, Thiago terminou seus estudos no Colégio de Aplicação, com um histórico escolar bastante bom, inaugurando no Colégio uma política de inclusão que hoje se expressa em uma cota para alunos “especiais”. É preciso destacar que são muito poucos os casos de jovens como o Thiago, que chegam a completar o Ensino Médio, já que isso envolve a necessidade de sempre ter alguém por perto para ajudá-lo a se locomover na cadeira de rodas, a comer, e mesmo fazer uma espécie de tradução dos seus códigos para os dos professores e colegas. Aos poucos estes foram se apropriando dos códigos e podendo estabelecer uma relação direta com o Thiago.

Os vestibulares foram outras grandes, suadas e sofridas maratonas. Mas que  Thiago e a família desde o princípio sabiam que não iam vencer. As condições oferecidas não dão o suporte necessário para que ele realize os concursos. A pessoa que o acompanha as provas não pode ter contato prévio com ele – é a mesma coisa que colocar um russo frente a um de nós (que não conhece o idioma russo) e pedir que um aplique uma prova com o outro. O tempo estendido não pode ser no mesmo dia – no ultimo vestibular Thiago ficou fazendo prova das 15:00 às 23 :00h…. Qual de nós já fez uma prova  em 8 horas seguidas, com 2 pequenos intervalos de 15 ou 20 minutos? Não  é necessário mencionar  outros itens solicitados e que nem foram discutidos – o não atendimento destes dois já bastam para que ele fique impossibilitado de passar. Mas as disciplinas deram esperança, objetivos para a sua vida. 

Thiago não anda, não fala, não pode dançar com a turma ou ir surfar. Mas ele pode estudar, pensar, pesquisar, ler, entender. E não é só isso. Aqueles que convivem com ele podem aprender uma grande lição de paciência, de perseverança, de confiança e de alegria de viver. Pois quem já chegou perto sabe que Thiago tem sempre um toque de humor, um sorriso, e uma preocupação genuína e muito tocante com todos que o cercam. Jamais você chega perto dele sem que com os olhos e os gestos que a gente já conhece, ele pergunte “como estás”? Como foi a viagem, ou o curso, ou seja lá o que a gente contou para ele da última vez.  

Mas a Universidade Federal de Santa Catarina, ao não permitir que Thiago continue sua maratona intelectual, cansativa, lenta, mas cheia de descobertas de lado a lado, está tirando dele a sua única possibilidade de contribuição para a sociedade, que é através do conhecimento, do pensamento, da elaboração intelectual. Que são as atividades que ele, sem ter coordenação motora, pode exercer. Numa época em que as políticas de inclusão estão em todos os projetos e planos, a UFSC se acomoda em uma velha política. A política de paralisia total.