Rumo (definitivamente) ao colégio de terceiro grau?

Proposta de carreira do Governo
Federal para o Ensino Superior

O MPOG através do seu secretário de Recursos Humanos, Duvanier Paiva Ferreira, disponibilizou a minuta do projeto de lei sobre a estruturação de carreira docente de nível superior federal em  reunião com representantes da diretoria da Andes e do Proifes ocorrida no dia 21 de julho do presente. A minuta está disponível aqui e, de acordo com o Secretário, deverá ainda sofrer modificações (pequenas) antes de ser encaminhada ao Congresso Nacional, após as eleições presidenciais.

A proposta é boa em alguns aspectos, ruim em outros…e muito ruim no fundamental.

Clique aqui para acessar o texto do PL proposto pelo governo (em pdf)

Deste modo, a minuta é muito ruim no aspecto da avaliação do trabalho docente e, em seus parâmetros de progressão e promoção (Cap. V), o mérito é praticamente restrito à atividade em sala de aula no ensino de graduação.

Como se o papel da Universidade Pública como entidade do Estado estivesse limitado ao de um colégio de terceiro grau.

Em vista disso, restringiremos o presente artigo à uma análise do Capítulo V da minuta.

Em seu Art. 10, a minuta estabelece 5 classes para a nova carreira: DI, DII, DIII, Professor Associado e Professor Sênior, com 4 níveis de progressão em cada classe. O cargo de Professor Titular passa a ser um cargo isolado (Art. 50).

O Art. 16 estabelece que o ingresso na Carreira dar-se-á no primeiro nível da classe DI, independentemente da titulação e o Art. 17 exige que o Professor deva estar nas  Classes D III, Professor Associado e Professor Senior, ou ter notório saber, como condições para o ingresso no cargo isolado de Professor Titular.

O Art. 18 regula a duração e os requisitos para progressão entre os interstícios. Os interstícios em cada nível são de 18 meses, cada um (§ 3° Inciso I), o que significa que, na nova carreira, cada professor com ingresso após a aprovação do projeto de lei, precisará de 28 anos e 6 meses para atingir o topo da carreira.

Requisitos para progressão

Os requisitos para progressão estão no § 3°, Incisos II e III do Art. 18: “ter ministrado, no ensino de graduação, no período, o equivalente a (….) três disciplinas semestrais de quatro horas semanais cada, para os docentes em regime de quarenta horas com ou sem dedicação exclusiva  e ter habilitação em avaliação de desempenho individual correspondente a, no minimo, setenta por cento do limite máximo da pontuação das avaliações realizadas no interstício considerado para a progressão funcional”. Como vemos, as doze horas semanais, por semestre, são as condições necessárias mas não suficientes para progressão. Outras atividades ainda não especificadas serão levadas em consideração na avaliação de desempenho individual.

O Art. 18 não faz qualquer menção ao ensino de pós-graduação e às atividades de orientação de alunos de mestrado, doutorado, iniciação científica e de trabalhos de fim de curso, atividades estas que fazem parte do dia-a-dia de qualquer docente academicamente produtivo.

Como estímulo à aceleração de progressão o § 4° exige que: “Os docentes que tiverem ministrado, (….)mais que três disciplinas semestrais, totalizando mais do que quarenta e oito horas-aula mensais no ensino da graduacao, para os submetidos aos regimes de quarenta horas e quarenta horas com dedicação exclusiva, concorrerão ao processo de aceleração de progressão podendo reduzir o tempo de intersticio para 12 meses”.

A proposta vai, portanto, muito além da Lei de Diretrizes e Bases de 20 de dezembro de 1996, que estabelece em seu Art. 57 que “Nas instituições públicas de educação superior, o professor ficará obrigado ao mínimo de oito horas semanais de aulas” sem diferenciar o ensino da graduação do ensino da pós-graduação.

A promoção de uma classe à seguinte far-se-á mediante avaliação de desempenho que também  se aplica à progressão entre os interstícios e à avaliação das atividades dos docentes no exercício de seus cargos: Art. 28. “Os titulares de cargos de provimento efetivo de Professor da Carreira de Magistério Superior Federal e de Professor Titular, integrantes do Plano de Carreira e Cargo deMagisterio Superior Federal serão submetidos, periodicamente, à avaliação de desempenho, conforme disposto na legislação em vigor aplicável aos servidores públicos federais e em normas específicas a serem estabelecidas em ato do Ministro de Estado da Educação (…), que permitam avaliar a atuação do servidor no exercício do cargo e no âmbito de sua área de responsabilidade ou especialidade”.

A participação em programas de pós-graduação aparece pela primeira vez no Inciso III do §5° do Art.18, mas como um requisito para a promoção para a classe de Professor Associado.

Análise do Capítulo V da minuta

O maior equívoco dos técnicos que elaboraram a proposta do governo foi o de considerar que, diante da demanda crescente de profissionais de nível superior produzida pelas atuais taxas de crescimento do PIB, a proposta deveria priorizar o ensino de graduação, exigindo do professor uma ocupação quase que exclusiva em atividades de formação destes profissionais.

Deste modo,  a minuta estabelece que o mérito do docente, que o torna merecedor de progressão, promoção e eventual aceleração é medido, sobretudo, pelo número de horas que este docente passa em salas de aula no ensino de graduação. A minuta exige dele um mínimo de 12h semanais em sala de aula, em cursos de graduação, enquanto que, na LDB de 1996, esta exigência limita-se a 8h semanais indiferentemente se em disciplinas de graduação ou pós-graduação.

O que separa um parâmetro do outro?

Doze horas semanais de sala de aula na graduação significam para o professor brasileiro, ao menos, 24 horas, também semanais, entre a sala de aula, preparação destas aulas, atendimento aos alunos, correção de provas e avaliação de defesas de trabalhos. Em grandes universidades americanas, o docente dispõe de “grants” para bons estudantes de pós-graduação que, durante os seus trabalhos de tese, possibilitam que eles se ocupem desta parte em troca de algum subsídio que os permita manterem-se em seus estudos. Não é, em geral, o caso do professor brasileiro.

Em nosso caso, este regime pode, eventualmente, ser satisfatório para os docentes mais jovens, nas classes DI e DII  que, quando academicamente produtivos, utilizam as 16 horas restantes para projetos de pesquisa que façam com que ele possa dispor de equipamentos e computadores e de ir atrás de bolsas de Iniciação Científica para alguns bons alunos de graduação que se mostram interessados em sua linha de trabalho.  Parte desses docentes tem, todavia, uma motivação especial para a pesquisa, que seria desfocada dessa atividade caso tivessem que passar mais horas na sala de aula. Também, pela sua falta de experiência didática, na imensa maioria dos casos, precisam, naturalmente, dar mais atenção à preparação de suas aulas. Sobrecarregá-los de atividades didáticas nos parece prejudicial a capacitação desses professores pesquisadores. Julgamos, também, que a atribuição plena de uma disciplina ao docente em seu regime probatório deva ser motivo de uma discussão mais aprofundada, que está fora do contexto do presente artigo.

À  medida que este docente progride na carreira e o nível de qualidade do seu trabalho acadêmico aumenta, ele irá  procurar ser admitido em um programa de pós-graduação de sua Universidade. Participar do programa, significa ter a possibilidade de contar com alunos em suas fases de dissertação de mestrado e teses de doutorado e de fazer crescer a sua linha de pesquisa.

Mantidas as atuais regras da minuta, isso significa ao menos uma disciplina semestral do programa com  4h semanais adicionais em sua carga de ensino e, mantendo-se a mesma relação anterior, isso faz com que as suas atividades de ensino exijam, agora, entre 28 e 32h. Sobram a este docente apenas 8-12h para todas as outras atividades.

E este docente precisa: a) estar atento às últimas publicações em sua área, ler e entender os artigos mais recentes que estão sendo publicados e traduzir isto para os seus orientandos e alunos em disciplinasd+ b) participar de congressos anuais nacionais e internacionais em sua área do conhecimentod+ c) contribuir academicamente com esta área.

Cada orientando de mestrado ou doutorado exige, ao menos, 2h semanais de atendimento. Nas áreas científicas, este docente precisa de, ao menos, 4-8h para ler e entender um artigo novo publicado. As revistas científicas são mensais…e várias e se este docente não faz isso, ele fossiliza e os seus alunos defendem teses triviais ou há muito já defendidas em algum lugar do planeta.

Saber o que há de novo em sua área de conhecimento é uma condição precípua para que este docente possa contribuir academicamente nesta área.

Além disso, este docente participa ou coordena projetos de extensão e pesquisa em resposta às demandas de órgãos de fomento, frequentemente em parceria com empresas, pois esta é, presentemente, a única forma de conseguir recursos para o seu laboratório ou departamento, na forma de computadores e equipamentos de pesquisa e/ou ensino possibilitando-o alavancar a sua linha de pesquisa e afirmar as suas idéias e o seu projeto acadêmico.

E com o passar dos anos mantendo-se este docente academicamente ativo, adicione-se à estas atividades as seguintes: a) revisão de artigos científicosd+ b) consultoria ad-hoc para órgãos de fomento no julgamento de projetos de pesquisad+ c) atividades de assessoramento em órgãos como a Capes e o CNPqd+ d) organização de congressos e encontros científicosd+ e) gestão de programas acadêmicos.

Conclusão

Não podemos ver, como erroneamente fizeram os técnicos que elaboraram a minuta, a Universidade como um colégio do terceiro grau onde os professores passam o seu tempo a dar aulas (de graduação), atender alunos (de graduação) e a corrigir provas (de graduação).

Onde a pesquisa e as atividades na pós-graduação, ainda que constem como requisitos na minuta para a promoção às classes mais altas, são vistas como um requinte só disponível para aqueles que se dispõem a varar as noites e a sacrificar seus finais de semana, férias e feriados.

E não como atividades fundamentais em uma Universidade, indispensáveis para elevar a qualidade do próprio ensino de graduação.

Estamos diante de uma proposta, concebida por técnicos que, visivelmente, não têm qualquer familiaridade com a Universidade e que não se dão conta do protagonismo da Universidade Pública, como Entidade do Estado, na produção do Conhecimento, tão necessário ao nosso país.

A nosso ver, caso a minuta seja aprovada, a atividade de produção de conhecimento será varrida de nossa universidade. Mesmo para os que, por vocação ou indução das agencias, insistam em fazer pesquisa e extensão nas IFES, o farão com uma qualidade abaixo dos seus níveis atuais. E até mesmo o ensino de graduação, suposto beneficiado com essa proposta, certamente contará com professores com menores condições de se dedicarem de forma adequada às suas disciplinas.