Pandemia impõe desafio à reabertura de escolas e amplia desigualdade

O impasse em relação à reabertura de escolas, em virtude do risco de contágio do novo coronavírus, expõe mazelas do sistema educacional e amplia desigualdade

Lívia Freitas, de 43 anos, mora em uma casa de quatro cômodos, em Paraisópolis, uma das maiores comunidades de São Paulo, com perto de 100 mil habitantes. O pequeno espaço, pelo qual ela paga R$ 800,00 de aluguel ao mês, é compartilhado por seis pessoas. Ali, vivem ela, o marido e os quatro filhos do casal. Dois deles estão em idade escolar, mas parece que habitam planetas distintos. Ana Beatriz, de 18 anos, cursa o terceiro ano do ensino médio como bolsista de uma unidade da escola Alef Peretz, mantida por integrantes da comunidade judaica na região. Daniel, de 9 anos, está na segunda série do fundamental, em uma escola pública do bairro. Quando a pandemia desabou sobre o país, todos os adultos da família estavam desempregados. Lívia, para complicar a situação, pegou covid-19. Diz ela: “Nem sei como saí viva desta história”.

Às portas do vestibular, a jovem Ana Beatriz temia pelo pior. Pensava que poderia perder o ano letivo e, no mínimo, adiar seu sonho de cursar medicina. As coisas, no entanto, se acomodaram. “A escola forneceu ajuda psicológica, um computador e um chip para a conexão com a internet”, afirma Lívia. “Em casa, as condições não eram boas, tinha barulho, mas minha filha conseguiu estudar durante o isolamento.” O universo escolar do garoto Daniel, por sua vez, derreteu. “Em cinco meses, ele não fez nenhuma aula”, diz a mãe. “Eu mesma fico tentando passar alguma coisa para ele ler ou escrever, mas tenho de dar um jeito até para conseguir papel.”

Em grande medida, o lar de Lívia pode ser visto como um microcosmo. Aconteceu ali o que ocorreu no país e no mundo. Durante a pandemia, mais do que nunca, estudar foi um privilégio. E se há um intenso contraste em uma só casa, em uma comunidade, ele fica ainda mais intenso quando a comparação envolve jovens de classes mais altas.

Uma estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU) aponta que 1,3 bilhão de estudantes em todo o planeta (90% da população estudantil) foi afetado pelo fechamento de escolas devido à covid-19. No início do mês, esse número caiu para a casa do bilhão, com a retomada das aulas em diversos locais. Segundo a ONU, contudo, 40% dos países não conseguiram apoiar os alunos em situação de risco nesse período. Isso resultou e ainda resulta em prejuízos que alcançam a aprendizagem, a convivência social, a nutrição (no caso dos “sem-merenda”), a saúde mental e, eventualmente, desemboca em abusos contra jovens, vítimas da violência doméstica.

Priscila Cruz, presidente do Todos pela Educação, entidade que atua na articulação de políticas públicas para o setor, observa que o impacto da covid-19 nas salas de aula ainda não encontrou a reverberação adequada no debate público. “Tem gente tratando o assunto como uma simples pausa, uma espécie de férias prolongadas”, diz. “Não é isso. O processo de aprendizado envolve vínculo, e em muitos casos ele se perdeu. O que deveria ter sido aprendido não foi e, necessariamente, não será recuperado mais adiante.” Tal diagnóstico é compartilhado por Heloisa Morel, do Instituto Península, organização focalizada no apoio a professores. “Estamos vendo uma intensificação na desigualdade do aprendizado”, afirma. “E os mais pobres vão perder mais espaço.”

No Brasil, há regiões e escolas, mesmo em grandes centros, que registram taxas pífias de adesão on-line dos alunos. Uma pesquisa feita pelo Datafolha entre 18 e 29 de maio, cerca de dois meses após a suspensão das aulas em regiões como São Paulo e Rio, mostrou que 24% dos alunos das redes públicas não haviam recebido atividades escolares para fazer em casa. A maioria morava em favelas (57%), estudava em escolas municipais (67%) e era negra (60%). Esses jovens concentravam-se nas regiões Nordeste (42%) e Norte (22%).

O real impacto do isolamento e desses números na capacidade da garotada de absorver conteúdo também é conhecido. Mas é possível oferecer uma ideia do tamanho da encrenca. “A parada das férias de verão, a mais longa que temos, resulta em perdas de 30% a 50% do aprendizado do ano anterior”, diz Priscila Cruz, do Todos pela Educação. “E isso sem uma situação como a atual, que envolve o estresse tóxico provocado pela doença e sem dificuldades adicionais como a queda de renda sofrida por muitas famílias.”

Um estudo feito em parceria do Instituto Unibanco com o Todos pela Educação mostra que as redes estaduais devem perder entre R$ 9 bilhões e R$ 28 bilhões em tributos em 2020. Há uma hipótese intermediária segundo a qual essa queda seria de R$ 17 bilhões. Tomando o conjunto dos 15,3 milhões de estudantes em redes estaduais na educação básica, isso significaria uma redução média no investimento anual por estudante de R$ 579,00 na menor perda, R$ 1.086,00 na intermediária e R$ 1.809,00 na pior.

Some-se a isso o tombo das redes municipais. Nesse caso, o baque poderia ficar entre R$ 15 bilhões e R$ 31 bilhões. Em se tratando de 23 milhões de crianças nesse segmento, a redução média no investimento por aluno ao ano ficaria entre R$ 670,00 e R$ 1.339,00.

Dificuldades financeiras e operacionais já estão postergando a reabertura das escolas para 2021. Na região do ABC Paulista, quatro municípios já anunciaram essa medida. Ela também está sendo aventada pelo prefeito de Diadema, Lauro Michels (PV). Uma pesquisa realizada pela administração local mostrou que 80,2% dos pais não querem que os filhos voltem às aulas presenciais. Entre os professores, 94,4% não são favoráveis ao retorno e 28,5% pertencem a grupos de risco.

Leia na íntegra: Valor Econômico