‘Não posso fazer faculdade se estiver morta’: os relatos de quem desistiu do Enem no último minuto com medo da covid-19

BBC News Brasil ouviu estudantes que, depois de um ano inteiro de videoaulas, somado ao risco de contaminar a si mesmos e familiares, não se sentiram seguros em realizar a prova

Victoria Kelly Pires, 18, tinha estudado ao longo de todo o ano de 2020 de olho no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Diferentemente de muitos jovens que não conseguiram acompanhar os estudos por falta de acesso à internet ao longo de 2020, ela não teve problemas de conexão e se preparava para as provas com a ajuda de aulas de cursinhos online.

Mas, no domingo, 17, depois de uma noite sem dormir, Victoria decidiu que ficaria em casa e não prestaria a primeira prova do Enem. “Decidi ontem (domingo) mesmo. Eu me preparei para essa prova o ano inteiro, mas pensei na minha família e na minha saúde – eu tenho asma. Conversei com meus pais e tomei a decisão de desistir. Foi difícil, mas não me arrependo”, diz ela à BBC News Brasil.

Victoria, que mora em Macaé (RJ) e pretende cursar Biomedicina, vai continuar estudando, a despeito do “ano perdido”. Pensa em tentar o Enem novamente na edição 2021. Aos amigos nas redes sociais que decidiram fazer a prova, ela desejou sucesso e segurança e explicou os motivos de sua desistência: “Não poderei fazer uma faculdade se estiver morta”.

O medo de prestar o Enem em meio a um novo pico de casos e mortes por covid-19 parece ter se refletido em uma abstenção recorde: compareceram à prova do dia 17 menos da metade (ou 48,5%) dos 5,5 milhões de inscritos no Enem impresso, segundo dados preliminares do Inep, órgão do Ministério da Educação que gerencia o exame. Ou seja, 2.842.332 pessoas inscritas acabaram não participando da prova.

Esse grupo inclui, além dos desistentes, cerca de 160,5 mil alunos do Estado do Amazonas e outros quase 4 mil alunos das cidades de Espigão D’Oeste e Rolim de Moura (RO), onde a prova não foi realizada no domingo, além de cerca de 10 mil estudantes que afirmaram estar com doenças infectocontagiosas, como a covid-19. 

‘Escolha entre saúde física e mental’

Para muitos alunos, porém, o Enem 2020 acabou sendo uma escolha entre “a saúde mental e a saúde física”, opina Vinícius de Andrade, criador do projeto Salvaguarda, que ajuda jovens de escolas públicas a ingressar no ensino superior.

“Os alunos de escolas públicas já passam por tantas dificuldades e, como se não bastasse, se depararam com o dilema de fazer o exame e (buscar) o sonho de ingressar em uma universidade pública ou cuidar de sua saúde, com medo de pegar covid-19”, explica Andrade.

Embora tenha se deparado com abstenções de todo o tipo – desde alunos que viajaram 60km para prestar o Enem mas se esqueceram do documento de identidade até quem errou o horário da prova -, ele acha que a maioria dos faltantes decidiu ficar em casa por uma mistura de dois fatores: medo da pandemia e sensação de despreparo para o exame.

É o caso de Juliana Sara Lima dos Santos, 19, que desistiu de prestar a prova em Cascavel (PR), por temer colocar a mãe (que tem pressão alta) em risco e porque não se sentiu confiante, depois de um ano inteiro estudando por videoaulas.

“Aqui na minha cidade os casos estão elevados, então fiquei muito insegura em ir fazer em meio a tantas pessoas”, conta a estudante, que sonha em cursar Medicina. “Na frente dos colégios ou faculdades vi umas imagens de reportagens com muita aglomeração de pessoas. Por mais que na sala de aula houvesse distanciamento, em frente às escolas estava bem movimentado.”

Agora, Juliana vai focar nos vestibulares de universidades paranaenses e seguir se preparando para o Enem 2021. “Conhecimento nunca é perdido: não fiz esse Enem, (mas) tem o próximo e vou levar toda a bagagem que adquiri até aqui. Em parte, estou aliviada (em não ter prestado) por causa da pandemia e, em outra, estou preocupada com o futuro, com as incertezas.”

Segundo Vinícius de Andrade, o mero ato de se inscrever no Enem já é, para muitos alunos de escolas públicas, uma demonstração de “coragem e do sonho por um futuro diferente”, diz. “Agora, é tentar ser frio, analítico e olhar o quadro geral, sem se ver diante de um muro de altura sem fim. (Recomendo) olhar para outros vestibulares seriados, vestibulares de universidades em seus Estados e tentar manter o ânimo para as próximas provas.”

Leia na íntegra: BBC News Brasil