Dados inéditos mostram “efeito tesoura” sobre mulheres na ciência brasileira

Levantamento apoiado pelo Serrapilheira mostra descompasso entre proporção de doutoras e de docentes mulheres nas universidades do País

A desigualdade de gênero é uma marca de diferentes áreas da ciência. Mulheres tendem a ser sub-representadas em várias disciplinas, como física, química e matemática. E mesmo naquelas com maior participação feminina, as cientistas costumam enfrentar mais obstáculos para sua ascensão acadêmica que seus colegas homens.

Um dos mecanismos que “cortam” a presença das mulheres na ciência é o chamado “efeito tesoura” – a redução da presença feminina numa determinada área (por exemplo, a docência) mesmo quando há um estoque de doutoras disponíveis para desempenhar aquela função. Um levantamento do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (Gemaa/Iesp-UERJ), apoiado pelo Instituto Serrapilheira, mostra a dimensão desse fenômeno na ciência brasileira.

A área de ciências agrárias, por exemplo, já alcançou a paridade de gênero no último estágio da pós-graduação, com 51% de doutoras. Mas, apenas 25% dos docentes permanentes nas universidades do país são mulheres. Em zootecnia e recursos pesqueiros, o fenômeno se repete: 52% dos doutores titulados são do sexo feminino, mas apenas 36% do corpo docente é de professoras. Isso significa que as mulheres formadas nessas áreas não estão chegando ao topo da carreira.

“É importante entender o que chamamos de ‘efeito-tesoura’ na ciência para localizar exatamente em que etapas da carreira acadêmica as desigualdades de gênero se instalam: se na formação de doutoras ou no recrutamento de professoras – ou em ambas”, explica Luiz Augusto Campos, coordenador do Gemaa e pesquisador apoiado pelo Instituto Serrapilheira.

Já a área de ciência da computação tem uma das menores proporções de mulheres tanto no corpo docente (cerca de 20%) quanto entre os doutores (apenas 18%). Aqui não há, portanto, que se falar em “efeito tesoura”, já que a proporção de professoras é próxima à de doutoras. O problema é outro – a baixa presença de mulheres em geral – e indica, por exemplo, que as políticas para a diversificação dessa área devem investir tanto na contratação de professoras mulheres quanto na formação de mais doutoras.

“O desenho e a implementação de políticas públicas para garantir a igualdade de gênero na ciência precisam de dados robustos que revelam as discrepâncias entre as diversas áreas do conhecimento e sinalizam os pontos críticos a serem tratados”, afirma Cristina Caldas, diretora de Ciência do Instituto Serrapilheira. “Por isso, é fundamental realizar estudos e repeti-los sistematicamente para avaliar o impacto de políticas ao longo do tempo.”

O gráfico abaixo compara a proporção de professoras permanentes nos programas de pós-graduação de universidades brasileiras (eixo vertical) à proporção de mulheres entre os titulados no doutorado (eixo horizontal). A posição de cada círculo representa o encontro entre a proporção de doutoras e a de professoras. O tamanho dos círculos indica a dimensão da comunidade acadêmica de docentes de pós-graduação, ou seja, o total de professores/as. A versão interativa do gráfico está aqui.

Há ainda casos interessantes como o da área de ciências biológicas, que apresenta paridade de gênero entre os docentes, com quase 50% de mulheres professoras em programas de pós-graduação. Mas esse percentual é bem inferior à presença de doutoras formadas, que é próxima à de 70%. Trata-se, portanto, de um cenário de maior equilíbrio entre os gêneros, mas com algum efeito tesoura.

Outras áreas alcançaram a paridade de gênero tanto na docência quanto no nível de doutorado, sem efeito tesoura. É o caso de arquitetura e urbanismo (53% de doutoras e 51% de professoras permanentes), história (47% de doutoras e 45% de professoras permanentes) e artes (48% de doutoras e 51% de professoras permanentes).

“O fato de uma área não possuir efeito-tesoura não quer dizer que ela tenha um cenário de equidade. Ao contrário, áreas com sub-representatividade feminina similar na discência e na docência são as que mais precisam de atenção. O que essa análise ajuda a entender é sobre quais grupos as políticas de equidade devem atuar”, alerta Campos.

Números inéditos obtidos com metodologia inovadora

O gráfico se baseia em dados extraídos da Plataforma de Dados Abertos da Capes. O Gemaa agrupou informações de docentes com vínculo permanente na pós-graduação e discentes titulados como mestres ou doutores entre os anos de 2004 e 2020, o que totalizou 3.904.422 casos durante o período. Depois, foi atribuído gênero a 3.761.970 casos (96% da base) pelo pacote {genderBR}, que permite extrair o sexo presumido do indivíduo a partir de um nome. Os 4% restantes correspondem a nomes raros, não contemplados pelo pacote.

É importante pontuar que tal classificação tem a limitação de ser binária. O Gemaa ressalta que ainda não há recursos para alcançar esse grande montante de acadêmicos por outros meios. “Trata-se, portanto, somente de um dos passos necessários para debatermos os desafios em torno da promoção de uma ciência mais inclusiva e plural”, pondera Campos.

Fonte: Jornal da Ciência