Professores pretos e pardos somam apenas 8,4% do corpo docente da UFSC

Docentes e estudantes refletem sobre a importância da lei de cotas e da diversidade no ambiente acadêmico

“A presença de professores negros, o nosso corpo político, faz uma diferença muito grande para quem está estudando entender que negros podem também estar neste ambiente da universidade, e estar neste lugar como docentes”. É dessa forma que a professora do curso de Jornalismo e pró-reitora de Ações Afirmativas e Equidade da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Leslie Sedrez Chaves, enxerga a importância da presença de professores e professoras negros na instituição.

Leslie foi a primeira professora negra do departamento de Jornalismo da UFSC, 40 anos após a fundação. O encanto pela docência vem desde sua infância, e aumentou após realizar o seu primeiro estágio docente, durante a pós-graduação. “Para mim, a carreira docente se mostrou como um caminho para a transformar a realidade, e quando tive o primeiro contato com os estudantes, eu me apaixonei pela profissão, e então, decidi que ia seguir estudando para me tornar um dia professora”.

A pró-reitora de Ações Afirmativas e Equidade ingressou na UFSC por meio do projeto de lei de 2014 que reserva 20% das vagas de concursos públicos federais para pessoas pretas e pardas. Apesar da medida promover maior inclusão em instituições federais de ensino, a desigualdade ainda se mostra presente.

Leslie Chaves, pró-reitora de Ações Afirmativas e Equidade da UFSC (Foto: Karol Bernardi/Apufsc)

De acordo com dados do Observatório da UFSC e da Pró-Reitoria de Desenvolvimento e Gestão de Pessoas (Prodegesp) de outubro de 2023, pessoas pretas e pardas, consideradas negras pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), somam 251 docentes na instituição, o que representa 8,4% do corpo total de professores. Os dados não condizem com a realidade populacional de Santa Catarina. De acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2022, 20,8% da população do estado se reconhece como negra.

Lei de cotas e o combate à desigualdade racial

Para Leslie, a implementação efetiva da lei de cotas na contratação e ingresso de professoras e professores negros na instituição é ainda um desafio a ser enfrentado. Como pró-reitora de Ações Afirmativas e Equidade, ela explica que, na UFSC, o número de vagas para cotistas é calculado a partir do percentual do número total de vagas definido no edital. As vagas para cotas são distribuídas por meio de um sorteio que estabelece quais cursos irão receber professores cotistas. Ela ressalta que o atual sistema necessita de reformulações para uma melhor aplicação da lei.

Como as vagas para cotistas são destinadas de maneira sorteada, há cursos que podem receber ou não o benefício das ações afirmativas. “Estamos repensando esse processo para efetivar a lei e para que haja vagas onde a gente tem de fato pessoas negras inscritas, porque às vezes distribuem em cursos que não há inscritos negros”, explica Leslie, que acrescenta que a não inscrição de pessoas negras permite a transferência de vagas para participantes não-cotistas, uma vez que a vaga é prioritária, mas não reservada.

O método do sorteio para definir o destino das vagas para cotistas foi estabelecido a partir de 2018, após interferência do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2017, com objetivo de evitar as manobras adotadas por algumas instituições no cumprimento da lei. Essa manipulação das vagas era apoiada em um dos artigos da Lei 12.990, de 2014, que diz: “ela será aplicada sempre que o número de vagas oferecidas no concurso público for igual ou superior a 3 (três).”

A partir disso, algumas universidades adotavam uma estratégia que consistia em quebrar os processos seletivos em vários pequenos concursos, de forma que, ao invés de um abrir um edital com 100 vagas, por exemplo, abriam 100 editais, cada um com uma única vaga, de forma que a aplicação da lei de cotas não fosse exigida. A decisão do ministro, para que alternativas fossem propostas nos casos de concursos com menos de 3 vagas, fez com que as instituições sugerissem a ideia de sortear as vagas para cotistas entre os departamentos das universidades.

Representatividade como potência

Lindberg Nascimento, professor de climatologia geográfica no curso de Geografia da UFSC, também conquistou sua vaga na universidade por meio da aplicação da lei de cotas no concurso.

Professor Lindberg Nascimento
(Foto: Arquivo Pessoal)

Ele afirma ser produto da política de ações afirmativas, atribuindo sua entrada no meio acadêmico a elas, e foi beneficiado pelas políticas de fomento à pesquisa, pelas oportunidades a que teve acesso durante sua carreira. Ao mesmo passo, ele acrescenta: “eu sou produto também de todo o movimento negro, que desde a década de 70 estimulou e lutou por equidade do ensino superior, democratização de ensino superior público”.

“Eu não cheguei aqui sozinho, não é só mérito próprio”, destaca Lindberg, que conclui: “se não tivesse agentes institucionais, professores e colegas que pudessem oferecer esse suporte inicial para que a gente pudesse caminhar e chegar até aqui, eu nunca teria chegado também.”

As reflexões do docente trazem à luz a importância da representatividade no corpo docente universitário para a formação acadêmica dos estudantes.

O caso se assemelha ao da pesquisadora e pós-graduanda em Jornalismo na UFSC, Jaíne Araújo. Ela relata que, durante sua formação, apenas conseguiu vislumbrar o caminho do mestrado durante o processo da graduação. “Para eu conseguir me ver como docente seria importante eu ter pessoas parecidas comigo na docência”, explica.

Jaíne Araújo, pesquisadora e pós-graduanda (Foto: Arquivo Pessoal)

Jaíne destaca, especialmente, a ausência de uma identificação com a trajetória percorrida para ocupar esses espaços. Essa falta, na perspectiva compartilhada pelos docentes e pesquisadores, somada às barreiras que precisaram enfrentar, faz com que exista uma dificuldade maior de enxergar a possibilidade da construção de uma carreira no meio acadêmico para essas pessoas. “Se nós somos maioria, a gente deveria estar ocupando também os lugares positivos. Não apenas sendo representados nesses lugares de subalternização”, afirma Jaíne. 

Lindberg relata um sentimento parecido com o da pesquisadora. Ele conta sobre um dia, em uma sala de aula da Universidade Estadual de Londrina (UEL), em que a maioria dos presentes eram pessoas negras da periferia da cidade. Falando sobre o impacto do momento em que teve essa percepção, o professor lembra, em específico, do cumprimento de uma aluna que, no final da aula, disse: “professor, é muito bom ter aula contigo por causa da sua representatividade”, recorda.

A inserção negra dentro do espaço acadêmico

Além da simbologia que professores negros representam para outros estudantes ocuparem o espaço acadêmico, a presença destes proporciona um ganho no currículo educacional dos alunos. A professora Leslie Chaves conta que no atual cargo como pró-reitora de Ações Afirmativas e Equidade há um trabalho na promoção da diversidade dentro do corpo docente da UFSC. “Essa diversidade visa pensar novas formas de construção de saberes ligados à cultura indígena e à cultura afro-brasileira, para que tenhamos um conhecimento além daqueles de origem europeia”, explica.

Para o antropólogo da Universidade de São Paulo (USP) e professor brasileiro-congolês Kabengele Munanga, é de extrema importância abordar nos planos de ensino textos produzidos por autores negros e discutir tematicas ligadas ao racismo e a história negra no Brasil para a implementação de uma educação antirracista. Em sua obra “Educação e diversidade étnico-cultural: a importância da história do negro e da África no sistema educativo brasileiro”, produzida em 2013, o docente explica: 

“A educação oferece uma possibilidade aos indivíduos para questionar os mitos de superioridade branca e de inferioridade negra neles introjetados pela cultura racista na qual foram socializados. Não se trata de recuperar uma memória que cuida apenas de nossas glórias, de nossos heróis e nossas heroínas, mas, sobretudo, de uma memória que busca a restauração de nossa história em sua plenitude”.

Thiago Santana, pesquisador e doutorando (Foto: Arquivo Pessoal)

O descaso das instituições de ensino brasileiro com a presença negra no âmbito educacional é retratado pelas situações presenciadas por Thiago Santana, pesquisador e doutorando em Antropologia na UFSC. Ele faz parte de um Projeto de Extensão chamado Ebó Epistêmico. A ideia do grupo é promover atividades de letramento racial em escolas da rede pública. 

O doutorando conta que no projeto costuma fazer perguntas sobre o conhecimento dos estudantes acerca das universidades e do ambiente acadêmico. As respostas, segundo Thiago, são quase sempre negativas. A maioria dos alunos não conhece a universidade, o que acontece nesse meio, e, alguns sequer compreendiam sua área de atuação, a Antropologia. 

O antropólogo diz que, a partir dessa discussão, buscava provocar, nos adolescentes, o interesse pela ideia de chegar até esses espaços, e entender a trajetória a percorrer para alcançá-los. A experiência, para ele, foi reveladora sobre a dificuldade desses jovens de se enxergarem nesses lugares. Um problema que ele classifica como muito danoso psicologicamente para as pessoas negras. 

“A gente nem percebe o que tá acontecendo. Por que eu não me sinto à vontade nesse lugar? Por que eu não acredito que esse lugar é para mim? Por que eu me sinto impostor aqui? Por que eu tenho medo de falar? Por que eu não consigo me expressar?”, reflete Thiago sobre os abalos psicológicos provocados pela invisibilidade das pessoas negras.

É dessa perspectiva que ele enxerga o papel da representatividade no corpo docente. Para ele, ver docentes negros ocupando esses lugares é uma forma de dizer para as próximas gerações que elas também podem. “A gente só consegue sonhar com o futuro que a gente consegue enxergar”.

Filipe Melo e Laura Miranda
Imprensa Apufsc