UFSC vai mapear diversidade em museus brasileiros e propor novas políticas de documentação

Política cultural é inédita no país e contribui para o acesso a patrimônios diversos; acordo com o Instituto Brasileiro de Museus deve ser fechado até final de 2023, diz coordenadora

Uma pesquisa de impacto nacional, com previsão de início a partir de 2024, resultará de parceria inédita entre a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Sob coordenação das professoras Renata Padilha e Thainá Castro, do curso de Museologia, o projeto pretende desenvolver padrões para a documentação museológica nacional e diagnósticos sobre a diversidade étnica, racial e de gênero do acervo brasileiro. Trata-se de uma iniciativa pioneira no país, com duração de 18 meses.

O estudo atualiza e amplia o escopo de uma resolução normativa de 2014 do Ibram – revogado em 2021, o documento estabelecia elementos para a descrição dos acervos museológicos. “Agora, vamos pensar formas de representação a nível nacional e com tipologias variadas”, explica Renata.

Em tramitação junto à Coordenação-Geral de Sistemas de Informação Museal (CGSIM), no Ibram, o Termo de Execução Descentralizada já foi aprovado pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação (Propesq) e pela Reitoria da UFSC. Cerca de R$ 250 mil serão destinados à Universidade para a criação de um laboratório de pesquisa no Centro de Filosofia e Humanidades (CFH) – o orçamento prevê compra de equipamentos e melhoria de espaço físico. “A ideia é criar ferramentas atualizadas que subsidiem os museus brasileiros”, afirma Renata. “Estamos dando um retorno efetivo de política cultural”.

A documentação museológica coleta e registra informações sobre os acervos antes de sua divulgação ao público. O processo é dificultado quando não há uma padronização dos dados. Otimizá-lo, como propõe o projeto, permitirá à sociedade conhecer patrimônios antes inacessíveis.

Além de acelerar a documentação, decidir quais peças serão representadas nos museus também é um dos pontos de discussão da pesquisa. “Muitas vezes as instituições reproduzem discursos racistas, homofóbicos e capacitistas. Precisamos ter uma documentação bem trabalhada para valorizar as pessoas e respeitar as diversidades”, diz Renata.

A parceria com o Ibram divide-se em duas etapas. Thainá Castro é responsável por mapear a representação da pluralidade étnica, racial e de gênero nos museus. Já Renata Padilha lidera a equipe que desenvolverá padrões inéditos de metadados para a descrição dos acervos nacionais. Segundo a professora, as tipologias vigentes – europeias e norte-americanas – nem sempre traduzem com exatidão a complexidade da miscigenação brasileira. “São padrões que não nos cabem. Nosso trabalho vai estruturar diretrizes que não temos até hoje para a gestão e salvaguarda dos acervos museológicos brasileiros”.

Coordenadora do projeto tem trajetória acadêmica reconhecida nacionalmente

Renata Padilha é uma das principais referências nos estudos sobre documentação museológica. Em 2014, lançou pela Fundação Cultural Catarinense o livro Documentação Museológica e Gestão de Acervo – as contribuições teóricas e metodológicas da obra ganharam relevância nacional.

“É um campo que ainda não tem muita pesquisa”, afirma Juliana Candido, estudante de graduação da Museologia e bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) do projeto que dá base à parceria com o Ibram. Estudos mais amplos sobre a organização do acervo brasileiro ainda são raros na documentação museológica, o que destaca o pioneirismo da iniciativa da UFSC. Além de Juliana a equipe de Renata é composta pela também estudante de graduação e bolsista Pibic Fabiana Alexandre, o doutorando Elias Machado e a professora Thainá Castro. “A tendência é aumentá-la com mais pessoas quando a parceria sair do papel”, diz a coordenadora.

A coordenadora Renata Padilha e a estudante de graduação Juliana Candido trabalharam na pesquisa que deu base à parceria com o Ibram (Foto: Rafaela Souza)

O projeto propõe uma reflexão crítica sobre os instrumentos de documentação museológica na contemporaneidade, entendendo-os não apenas como um trabalho técnico. “Preenchemos planilhas de catalogação sem pensar se elas fazem muito sentido”, afirma Renata. “Quando quero pensar em acervos específicos de grupos LGBTQIAPN+, como vou descrevê-los? Quais histórias estão sendo contadas pelos museus sobre estes grupos?”.

A pesquisadora faz referência ao discurso da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie sobre o perigo das histórias únicas para problematizar as representações museológicas. Salvaguardado no Museu da República, a coleção Nosso Sagrado é um exemplo de história invisibilizada – o acervo das peças de religiões de matriz africana esteve apreendido por quase um século no Museu da Polícia do Estado do Rio de Janeiro.

Um dos caminhos para diversificar a representação dos acervos, sugere Renata, é a gestão compartilhada dos processos institucionais com pessoas da comunidade. “O museu não vive só da materialidade, mas das pessoas que querem se ver representadas”, diz. “E a documentação é o caminho pelo qual a sociedade vai se apropriar daquele patrimônio”, completa Juliana.

Pesquisas da Museologia questionam formato tradicional dos museus

O impacto nacional da parceria com o Ibram é reflexo da trajetória acadêmica de Renata, mas também do projeto pedagógico do curso de Museologia da UFSC. Para a estudante de graduação Juliana Candido, sua formação desafia as práticas mais tradicionais da área. “Somos provocados a buscar outros caminhos, reolhar espaços e repensar a profissão”.

Um exemplo é a pesquisa de Karine Lima, professora do curso, sobre outras formas possíveis de fazer museologia. Ela estuda os processos de “descolonização” dos museus – em especial a repatriação de acervos devolvidos aos seus países de origem, após serem roubados por nações durante períodos de dominação territorial. De forma mais ampla, o pensamento decolonial considera que museus não são instituições politicamente neutras, ausentes de relações de poder. “Há sempre alguém que manda o que deve ser exposto e o que deve ser retirado”, sintetiza.

Assim como Renata é crítica aos padrões europeus de documentação museológica, Karine destaca a relação que museus não-tradicionais mantêm com a preservação de objetos. “Para algumas comunidades indígenas, alguns objetos nem deveriam ser expostos. São objetos de rituais que devem ser destruídos após o uso”.

Karine Lima estuda museus a partir da teoria decolonial (Foto: Rafaela Souza)

Ecomuseus, museus quilombolas, indígenas e de território são iniciativas que fogem das instituições museológicas tradicionais ao valorizarem o diálogo com a comunidade do seu entorno. Na UFSC, o Museu de Arqueologia e Etnologia (MArquE) realizou em 2017 uma curadoria compartilhada com representantes Guarani, Kaingang e Laklãnõ-Xokleng junto da equipe do projeto Saberes Indígenas na Escola.

“São dois movimentos”, explica Karine. “Trazer as comunidades para dentro dos museus, mas também oferecer suporte técnico para que elas criem seus próprios espaços de representação”.

Em fase inicial, o estudo da pesquisadora é acompanhado por uma equipe de 10 estudantes de graduação. Neste momento o grupo discute textos teóricos e prevê, para os próximos meses, estudos de caso sobre monumentos derrubados em protestos, além de um mapeamento sobre iniciativas de descolonização nos museus brasileiros.

Já Renata deve coordenar, a partir do próximo ano, a parceria com o Ibram e continuar o seu projeto de pesquisa. “Nossos estudos parecem tão específicos, mas eles constroem conhecimento na contramão das fake news, das histórias únicas que definimos como verdade e ninguém questiona. Quando falamos de documentar, falamos de informar e contribuir para a sociedade”, finaliza.

Sobre as pesquisadoras

(Foto: Acervo Pessoal)

Renata Padilha é professora do curso de graduação em Museologia da UFSC e doutora em Ciência da Informação pela mesma universidade. Tem experiência em documentação museológica, gestão de acervos, expografia e reprodução digital.
Contato: [email protected]

(Foto: Acervo Pessoal)

Thainá Castro é professora do curso de graduação em Museologia da UFSC e doutora em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem experiência em gestão de acervos, narrativas e metodologias expográficas.
Contato: [email protected]

(Foto: Acervo Pessoal)

Karine Lima é professora do curso de graduação em Museologia da UFSC e doutora em História pela mesma universidade. Tem experiência em assessoria, consultoria, elaboração e desenvolvimento de planos museológicos, repatriação e restituição de bens culturais.
Contato: [email protected]

Fonte: Notícias UFSC