Conte-me mentiras de Ferreira Lima

*Por Armando Lisboa

“Na mesma cidade, um evento significativo será contado, à noite, de outra maneira que no dia seguinte”
Goethei

Há mais de 40 dias publiquei artigo onde contesto fortemente as acusações postas ao primeiro Reitor da UFSC. Até o momento ninguém os refutou, nem mesmo integrantes da Comissão Memória e Verdade (CMV). Ao que parece, adotam a tática de simplesmente ignorar e assim desqualificar as críticas. Uma instituição como a universidade deveria respirar o debate aberto como elemento natural do processo de conhecimento. Subtrai-lo sintomatiza a espiral corrosiva que nos afunda cada vez mais.

A CMV colheu diversos depoimentos de testemunhas dos eventos transcorridos na UFSC ou com cidadãos vinculados a mesma durante a Ditadura Militar. Nenhum dos ouvidos pela CMV manifestou ter sido perseguido pelo prof. João David Ferreira Lima (JDFL), ou que o antagonismo político que naquela época os antepunha tenha implicado em prejuízos à sua vida na UFSC. Eles relatam o alinhamento de JDFL com o Regime Militar, mas não informam ou denunciam que tal posicionamento político lhes tenha trazido maiores problemas dentro da UFSC. Ou seja, conforme os próprios testemunhos colhidos pela CMV, não houve perseguição política dentro da UFSC por parte de JDFL que tenha ferido direitos daqueles depoentes enquanto acadêmicos ou membros da UFSC.

Esta integridade de JDFL também emergiu dos trabalhos de outra comissão, criada em 1998 pelo Governador Paulo Afonso Evangelista. Presidida por Genir Destri, aquela comissão tinha o intuito de avaliar pedidos de indenização por parte dos que foram perseguidos politicamente entre 1961 e 1979 em Santa Catarina. Foram então deferidas 355 indenizações. Das centenas de depoimentos e manifestações ouvidas e analisadas então, tampouco surgiram quaisquer indícios de que JDFL estivesse envolvido em perseguições contra algum cidadão da comunidade da UFSC.

Sejamos claros: não houve, por parte do primeiro Reitor, atos que feriram minimamente direitos de cidadãos da UFSC. A “identificação com a Ditadura” seria mácula suficiente para revogar homenagens. Ou seja: os que hoje apontam o dedo acusatório contra JDFL estão, em verdade, perseguindo-o por conta de suas posições políticas na época, numa espécie de revanchismo póstumo. É uma vingança misteriosa, pois voltada contra aquele que impediu os então considerados “subversivos” de sofrerem maiores problemas dentro da academia, como demonstrei no artigo anterior.

A CMV/UFSC se fixou em “rusgas pessoais, familiares e partidárias da época, não relacionadas a questões de direitos humanos”ii. Elas foram expostas em alguns ofícios que a CMV conseguiu garimpar, os quais não trouxeram consequências materiais a nenhuma das pessoas neles citadas. Ora, se a história não jorra cristalina dos mesmos, sua avaliação exige que se reponha meticulosamente o contexto preciso em que surgiram. Porém, ao invés de seguir esta regra básica da hermenêutica, buscando iluminar o teatro de sombras e bastidores onde aqueles ofícios se situam, a CMV os toma literalmente como prova persecutória de JDFL. Quem, sensatamente, trouxe aquele contexto foi a Dra. Heloísa Blasi, com seu exímio trabalho de buscar impedir a desonra de JDFL.

Já a CMV reduziu a UFSC a um mundo em preto e branco, sem gradações, onde apenas mocinhos e bandidos atuam. Contudo, algo sempre está sob os textos. Quando tudo é aplainado, há um apagamento da possibilidade da verdade.

“O conhecimento histórico é sempre mais do que aquilo que se encontra nas fontes”, ensina Reinhart Koselleckiii, investigador historiográfico que desponta entre os mais monumentais da disciplina. Enfatiza ainda que, ao contrário do jurista, do teólogo e do filólogo – que atribuem ao texto “uma posição genuína incontestável” – o historiador busca extrair “uma realidade que existe além deles”iv.

Todavia, ao que parece, ao invés de se dar o trabalho como historiador, há colegas que zombam do direito ao contraditório e performam dancinha funk em plena reunião do CUn, como se aqui imperasse o orwelliano lema “ignorância é força”… Aliás, e os intimidantes mascarados (presentes na primeira reunião do CUn sobre a polêmica proposta de mudar o nome do campus, em 29/4), outro sinal da novilíngua de George Orwell na UFSC?

Mais. A CMV, de forma inapropriada, descreve o cenário e circunstâncias de outras capitais onde a repressão atuou, induzindo o leitor a transpor para Floripa uma realidade que aqui praticamente inexistiu. Florianópolis era nos anos 1960 uma provinciana cidade. Sua elite agregada na UFSC performava quase que uma única família. O prof. Sílvio Coelho dos Santos (cf. relato publicado pela CMV) revela que “eu tenho a convicção de que o telefonema do Professor Ferreira Lima (ao Ary de Oliveira, tenente-coronel reformado do Exército, diretor da Polícia Federal na época) e o relacionamento de meus familiares (com o mesmo, oriundo de uma família de Florianópolis) permitiram que o livro fosse liberado”. […] Caso eu fosse professor de uma grande instituição, como a USP, UnB ou UFRJ, eu não teria sucesso na minha carreira acadêmica, pois a apreensão do livro resultaria certamente numa cassação ou algo mais grave”v.

Ora, a esposa deste diretor da Polícia Federal (Ary de Oliveira) era prima-irmã do pai do Heitor Bittencourt (que presidiu o DCE entre 1967/8, também entrevistado pela CMV). Estes relacionamentos todos na Floripa de então impediram que “algo mais grave” ocorresse …

i Sentença que frequentemente inspirou Reinhart Koselleck.
ii Cf. prof. Fabricio Neves: “A primeira via”.
iii “Futuro passado”.
iv Estratos do tempo”.
v “Memórias reveladas da UFSC durante a ditadura civil-militar

*Armando Lisboa é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais do Centro Socioeconômico (CNM/CSE) da UFSC e ex-diretor da Apufsc-Sindical (2006-2010)

Artigo recebido às 13h55 do dia 9 de junho de 2025 e publicado às 14h37 do dia 9 de junho de 2025