A luta para levar vacinas brasileiras para além da pesquisa básica

Nas contas do Ministro da Saúde, o País poderia contar com cerca de 385 milhões de doses de vacinas contra a covid em 2021, segundo informe da Agência Brasil, mas nenhuma realmente desenvolvida aqui

Em razão das chuvas intensas, o mês de janeiro é costumeiramente marcado no Brasil por desastres como enchentes e desmoronamentos. Neste ano, entretanto, a tensão vivida pelo país foi provocada pelo recrudescimento da pandemia, que se caracterizou por muitas mortes por asfixia, ao mesmo tempo em que as autoridades buscavam importar vacinas e ingredientes para a produção interna de imunizantes.

Um lote de 2 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca foi obtido às pressas da Índia pelo governo Federal via fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e desembarcou no Brasil no dia 22, depois de uma semana de incertezas e negociações diplomáticas. A essa altura, o Instituto Butantan, órgão do Estado de São Paulo, já estava de posse de 6 milhões de dose da CoronaVac, vendidas pelo laboratório chinês Sinovac. Somando os dois imunizantes, aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no dia 17, o Ministério da Saúde dispunha de duas doses para oferecer a quatro milhões de brasileiros, ou 1,8% da população brasileira.

No dia 19, o apelo dramático de Dimas Covas, presidente do Butantan, por gestões do presidente Jair Bolsonaro junto a autoridades chinesas temperaria a liberação de 5,4 mil litros do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), necessário à produção de 8,6 milhões de doses da CoronaVac, insumo que só chegou no dia 3 de fevereiro. No dia 10, chegariam mais 5,6 mil litros a serem diluídos para a obtenção de outros 8,7 milhões de doses destinadas ao Plano Nacional de Imunizações (PNI).

O mesmo tipo de insumo, fundamental para a fabricação da Oxford/AstraZeneca pela Fiocruz, enfrentava atraso e só alcançaria o Brasil no dia 6 de fevereiro, numa primeira remessa de 90 litros, suficientes para 2,8 milhões de doses. Mais 13 remessas estão programadas para chegar, de modo que a Fiocruz cumpra o plano de envasar e rotular 100,4 milhões de doses da vacina até julho — volume semelhante ao pretendido pelo Butantan a partir do IFA importado, com possibilidade de entrega de 54 milhões de doses extras ao governo federal.

Fora isso, o Brasil deve contar em algum momento com 10,6 milhões de doses de vacinas Oxford adquiridas do consórcio global Covax Facility, coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e negocia a compra de 10 milhões de doses do imunizante russo Sputnik V, desenvolvido pelo Instituto Gamaleya, além de 20 milhões de doses da Covaxin, fabricada pelo laboratório indiano Bharat Biotech. O fornecimento da Sputnik pode aumentar com o envase do imunizante pela farmacêutica brasileira União Química.

Negociações estariam também andamento com os laboratórios Pfizer, Moderna e Janssen, os três dos Estados Unidos, segundo o Ministério da Saúde.

Um dos trunfos da Fiocruz e do Butantan, a chamada incorporação tecnológica para a produção local do IFA ainda vai testar os nervos das autoridades sanitárias às voltas com uma pandemia responsável por cenário devastador: os casos da doença caminham para 10 milhões e as mortes, para 240 mil; quase um milhão de pessoas estão “em acompanhamento”; os serviços e profissionais de saúde enfrentam estresse inédito e um número não apurado de cidadãos apresentam sequelas da doença, apesar dos 8,5 milhões na categoria de “recuperados”.

Passo decisivo no momento para uma maior autonomia do Brasil em vacinas, a capacitação tecnológica deve ser concluída em abril pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz), de maneira a que, a partir de agosto, a Fiocruz possa distribuir vacinas fabricadas 100% por ela num total de 110 milhões de doses. Os planos do Butantan para fabricação do IFA terão de aguardar a conclusão de sua nova fábrica, prevista para o fim do ano.

Nas contas sempre cambiantes do Ministro da Saúde, o país poderia contar com cerca de 385 milhões de doses de vacinas contra a covid em 2021, segundo informe da Agência Brasil, mas nenhuma realmente desenvolvida aqui, a despeito dos acordos de transferência de tecnologia da Fiocruz com a Universidade de Oxford e do Butantan com a Sinovac.

No auge da incerteza sobre a capacidade de abastecimento do Brasil em vacinas, os especialistas se desdobravam em explicações sobre a dependência do país nesse campo, apesar de abrigar duas instituições de peso e contar com pesquisadores de renome internacional. Já o presidente Jair Bolsonaro anunciava que o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, desenvolvia uma “vacina brasileira”, embora não tivesse detalhes do projeto.

A declaração imprecisa do presidente referia-se, na verdade, a um programa de financiamento para a pesquisa em imunizantes voltados à covid-19 coordenado desde abril pelo ministério por meio da Redevírus MCTI, um conselho de especialistas no tema, que elegeu 15 projetos de onze instituições, nos quais foram aplicadas verbas de diferentes órgãos e rubricas no valor de R$ 9 milhões, segundo o site da pasta. Valor acima desse foi informado pelo ministério diretamente à Agência Senado (ver mais abaixo).

Desenvolvida a etapa básica da pesquisa, que consiste na escolha da estratégia de obtenção do antígeno, o elemento a ser usado para induzir a formação de defesas (podendo ser anticorpos ou resposta celular), três projetos foram escolhidos para a etapa industrial por meio dos testes clínicos em humanos. Na fase da pesquisa básica, o antígeno, que pode ser o vírus inativado, parte dele ou um vírus de outra doença utilizado como veículo de programações genéticas, é testado em animais, por exemplo.

“Temos vários protótipos de vacina. O grande problema é que depois da prova de conceito e do protótipo inicial, nós não conseguimos levar isso para os testes clínicos. Não temos quem faça essa transposição. É coisa muito importante pensarmos nessa cadeia. Temos feito um grande esforço para alertar o pessoal das áreas de gestão e políticas científicas da importância de a gente ultrapassar e dar esse passo, para que nossas vacinas não fiquem paradas no vale da morte”, explicou no dia 5, em debate promovido pelo Centro de Estudos do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), o pesquisador do Instituto René Rachou (Fiocruz-Minas) Ricardo Tostes Gazzinelli. Coordenador de um projeto de vacina com chances de chegar à etapa de testagem clínica, Gazzinelli é também coordenador desde 2005 do Instituto Nacional de Ciências e Tecnologia de Vacinas (ICTV).

Segundo ele, o desenvolvimento da vacina brasileira depende de que a indústria possa “fazer o escalonamento do chamado lote-piloto em boas práticas de fabricação” e o controle de qualidade desse material que será utilizado na fase dos testes clínicos. “É onde nossas vacinas estão morrendo. A pandemia realçou isso”, acrescentou o cientista, que não vê dificuldade da ciência brasileira de realizar os testes clínicos em humanos, o que foi provado pela participação de diversas instituições na fase 3, considerada por ele a mais complexa, de vacinas como a CoronaVac, a Osxford/AstraZeneca, Pfizer/BioNTech e a Janssen.

Em outro debate, realizado virtualmente no dia 29 de janeiro pelo Instituto Questão de Ciência, o diretor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP) e responsável pelo Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas, Luís Carlos de Souza Ferreira, havia traçado um painel amplo da cadeia mencionada por Gazzinelli:

“É preciso valorizar a ciência e entender que a autonomia nacional, a independência em qualquer área envolvendo tecnologia, mas particularmente na área de saúde, exige planejamento, plano estratégico, exige entender a matéria e ter pessoas competentes pensando como isso pode ser feito. Os projetos de desenvolvimento aqui foram errados desde o início”, lamentou.

“As fábricas de vacinas, o Butantan, a Fiocruz, nos dão muito orgulho, mas o que está cada vez mais evidente, para quase todas as vacinas, [é que] elas transferem, licenciam tecnologias desenvolvidas no exterior. Na maioria das vezes, até mesmo os reagentes, os componentes principais, já vêm prontos, como no caso das duas vacinas [CoronaVac e Oxford], são envasados, recebem o rótulo e saem os frasquinhos. É uma etapa importante? É, mas está longe de garantir a autonomia do processo integral”, avaliou ainda Ferreira.

Segundo o cientista, o Brasil está “relativamente bem na pesquisa básica”, com universidades, especialmente as públicas, assim como instituições de pesquisa, há décadas formando pessoal que estuda vírus e bactérias, reunindo conhecimentos importantes para que se possam idealizar vacinas e estratégias vacinais. Daí surgem tecnologias como a das proteínas recombinantes dispersas em diferentes vetores, bactérias, leveduras, células de mamíferos e células de insetos. As vacinas genéticas a partir de DNA e RNA estão igualmente na pauta dos cientistas brasileiros “há bastante tempo”, conforme Ferreira. Testes de laboratório em células e camundongos, por exemplo, já geraram mais de 100 artigos publicados pela USP.

“Com esses resultados, os pesquisadores publicam um artigo, felizes da vida por terem desenvolvido uma vacina, mas fica por isso mesmo. Temos desde vacina terapêutica para câncer até vacinas para cárie dental, passando por vacina para diarreia causada por bactéria, malária, fungo, herpes, zika, dengue. Temos uma infinidade de modelos. O que falta para sair da publicação e chegar lá na fábrica de vacinas, de tal maneira que a Fiocruz e o Butantan coloquem nos frasquinhos, rotulem e sirvam à população? É uma distância abissal. Nós não nos preparamos para isso”, exasperava-se o estudioso.

De acordo com Ferreira, o modelo das empresas públicas e farmacêuticas privadas, é exatamente igual: “Licenciam, compram os insumos produzidos fora, empacotam, colocam nos envelopes e saem vendendo. É muito lucrativo. Tanto é que são poderosas, com balanços gigantescos, mas baseadas nesse modelo, que é muito particular. É muito interessante no curto prazo, economicamente, mas a longo prazo, em termos de autonomia nacional, de independência, é suicida”.

O papel da pandemia em iluminar, “de uma maneira gritante”, esse cenário é outro ponto de contato entre a análise de Ferreira e Gazzinelli. Nas palavras do pesquisador da USP, “o Brasil está literalmente de joelhos, pedindo que a China nos mande os insumos, que a Índia nos mande os insumos”. Para ele, o IFA, em última instância, a vacina a ser envasada, à qual se agrega um tampão [solução estabilizadora] ou se aplica um processo de diluição, é uma tecnologia limitada em termos de desenvolvimento.

E quais são essas etapas intermediárias que estão vedadas à academia?

Na descrição de Ferreira, uma vez que é feita uma descoberta numa escala pequenininha, e há indícios de que o achado é bom em condições experimentais, num camundongo, a primeira preocupação é produzir a formulação vacinal numa escala de milhares ou até centenas de milhares de litros.

“Isso não se faz num laboratório de pesquisa de uma universidade. Nenhum lugar no Brasil aqui tem uma universidade em condições para isso — e nem deve. Isso tem de ir para instituições específicas voltadas para isso, as indústrias. No entanto, as nossas indústrias, públicas ou privadas, não têm o preparo, até a competência mesmo, para produzir imunobiológicos, e mesmo princípios ativos e fármacos, em boas práticas de fabricação. Isso quebra a nossa autonomia. É um elo que precisa ser construído: instalações que tenham condições de produzir imunobiológicos em escala industrial”, enfatizou Ferreira.

Na opinião dele, essa é uma realidade em geral para o setor farmacêutico: “O Brasil perdeu essa corrida, não desenvolveu nada, só licenciou e está tentando fazer genéricos. Ferreira, pondera, entretanto, que “algumas farmacêuticas brasileiras estão correndo atrás do prejuízo, mas não para vacinas”, e sim para o desenvolvimento de anticorpos monoclonais usados em imunoterapia para câncer, cujo faturamento é de pelo menos US$ 100 bilhões por ano.

No mesmo debate, o virologista Maurício Nogueira, professor Adjunto da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto e integrante do Instituto Questão de Ciência, salientou que a carência do Brasil em matéria de vacinas é parte de um quadro amplo de lacunas e decorre da falta de uma política de verdade voltada à pesquisa, com planejamento e volume de recursos adequado. “O problema não começou no atual governo. Já vem de há muito e não se trata só de dinheiro”, alertou. Segundo ele, em épocas de mais dinheiro, faltava uma melhor definição clara do que fazer com as verbas, e recursos foram investidos em programas que ele considera equivocados.

Ainda que em desvantagem na “corrida”, o setor de pesquisas não perde a esperança de cruzar em algum momento a linha de chegada, ou seja, a distribuição ao público de uma vacina “nacional”, adjetivo que perdeu o sentido estrito, dado o nível de cooperação internacional que se estabeleceu em busca de descobertas relacionadas ao coronavírus Sars-Cov-2. A pandemia deu oportunidade à maior troca de conhecimento científico da história, de acordo com o pesquisador emérito da Fiocruz Akira Homma.

Os responsáveis pelos projetos considerados mais promissores resultantes do edital lançado em abril de 2020 pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, entre eles o Instituto do Coração (InCor) da Faculdade de Medicina da USP, fazem planos para o lote-piloto a ser utilizado nas fases clínicas (avaliação de segurança e eficácia) de 1 a 3. O quanto seria necessário para viabilizar esses planos? Os números, como é de esperar em um momento de escassez de dinheiro, não estão claros. O próprio Bolsonaro falou em cerca de R$ 300 milhões, mas esse valor seria o necessário somente para os testes em massa da fase 3 de um projeto, que podem requerer até 30 mil voluntários. Para as fases 1 e 2, as três estratégias em andamento consumiram algo em torno de R$ 90 milhões no total.

A fonte dos recursos é outro assunto em discussão. Em princípio, o governo estuda a utilização do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), cuja verba foi blindada dos contingenciamentos orçamentários usuais há muitas décadas no Brasil pela Lei Complementar 177, de 2021, resultante do projeto PLP 135/2020, aprovado por 71 votos a um no Senado e por 385 a 18 na Câmara dos Deputados. No entanto, ao sancionar a matéria, Bolsonaro vetou a proibição de que os recursos do FNDCT venham a ser colocados em reserva de contingência. Vetou do mesmo modo o desbloqueio dos recursos integrais do FNDCT de 2020. Com isso, o fundo, considerado o principal instrumento de financiamento à ciência, tecnologia e inovação, continua sob o risco de corte de 90% dos recursos para investimento.

“Essa é uma decisão catastrófica para o país, ainda mais em um momento de grave crise sanitária, econômica e social, e que caminha na direção oposta ao que fazem os países desenvolvidos”, diz um documento divulgado por 104 entidades ligadas à ciência e à pesquisa, signatárias de uma campanha contra os vetos encabeçada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) por meio de plataforma de petição. “O país continuará a ser privado de um recurso essencial para apoiar as universidades, institutos federais e instituições de pesquisa, para manter e expandir laboratórios de pesquisa e para fomentar projetos inovadores, em particular em pequenas e médias empresas, imprescindíveis para a recuperação econômica do país. A liberação dos recursos do FNDCT é também fundamental para apoiar a pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico no combate ao novo coronavírus”, alertam.

— Contingenciar recursos de qualquer setor já é ruim, porque pode ser considerado um confisco. Imagine confiscar dinheiro destinado à pesquisa, à tecnologia. O que falta é a valorização do conhecimento. Eu não vejo nesse governo boa vontade com pesquisa, mas há no Senado um grupo de senadores que pensa que ao invés de incentivar o contingenciamento, a gente precisa destinar mais verbas para pesquisa e temos nos esforçado para isso — afirma o senador Plínio Valério (PSDB-AM).

— Infelizmente, o que vemos é um governo que não entende nada de ciência e que, ao contrário, nega os avanços que a ciência obteve para a humanidade. O melhor momento do setor foi no ano de 2013, quando Dilma era presidente e tivemos R$ 23 bilhões de investimentos no setor. De lá para cá, as verbas destinadas à pesquisa e desenvolvimento só fizeram cair. O que é mais grave é que isso acontece, em boa parte, por um ato do próprio Poder Executivo, que contingencia o Orçamento e termina por não executar o que foi aprovado pelo Congresso Nacional — aponta o senador Jean Paul Prates (PT-RN).

O parlamentar dá como exemplo as bolsas de mestrado e doutorado concedidas pela Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior (Capes), que não têm sido reajustadas e, segundo ele, estacionaram em R$ 1,5 mil para mestrado e R$ 2,2 mil para doutorado.

— Essa falta de apoio ao setor gera uma fuga de cérebros. Estamos perdendo nossos melhores pesquisadores e, até mesmo jovens promessas, para outros países, onde eles encontram melhores remunerações, laboratórios bem montados e garantia de verbas para pesquisas. O que estamos fazendo é condenar o país ao atraso e é por isso que, dificilmente, conseguiríamos desenvolver aqui no Brasil uma vacina nos prazos em que ela está sendo desenvolvida em outros países como a China, Alemanha e Índia — adverte o senador (ver abaixo entrevista completa).

— Nós fizemos a nossa parte, somos competitivos. Começamos a pesquisa de uma vacina em maio e temos um antígeno pronto para ser testado nas fases clínicas 1, 2 e 3, faltando apenas o teste de toxicidade em andamento em Santa Catarina e um teste de eficácia sendo feito nos Estados Unidos. Na segunda-feira, vamos entrar com a documentação completa na Anvisa para obtermos a autorização de prosseguimento. Isso é uma vitória. Cabe ao ministério encontrar os recursos para as próximas etapas, mas até agora não recebemos resposta — disse em entrevista à Agência Senado o professor Célio Silva, da USP de Ribeirão Preto, coordenador do projeto mais adiantado, segundo ele, dos três que chegaram à seleção final pelo MCTI.

Conforme Silva, os resultados da pesquisa feita em parceria com a startup brasileira Farmacore e o instituto norte-americano PDS, que forneceu a substância adjuvante ou carreadora, são muito promissores pela alta qualidade tecnológica aliada à simplicidade da confecção do futuro imunizante. Os pesquisadores chegaram a um antígeno (a substância que estimula as defesas do organismo) formado com uma parte da proteína spike do Sars-Cov-2, que resulta numa proteína recombinante S1 dinamizada pelo adjuvante fornecido pela PDS.

— Essa vacina vai ativar todo o sistema imunológico de uma maneira muito eficiente, com respostas celulares, e não só induzir à produção de anticorpos, além de ser facilmente reprogramada em face de variantes do vírus — explica o cientista.

Depois de utilizar R$ 3,8 milhões do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), na modalidade de encomenda tecnológica, o projeto precisa de mais R$ 30 milhões para os testes clínicos com 120 a 200 pessoas, nas fases 1 e 2, e aproximadamente R$ 300 milhões para a fase 3, de modo que se possa repassar a tecnologia a uma empresa farmacêutica nacional, já em negociação, ao final do ano.

De acordo com o secretário de Pesquisa e Formação Científica do MCTI, Marcelo Morales, os projetos em fase pré-clínica adiantada (ver arte), poderão, em breve, iniciar os estudos clínicos com voluntários humanos, mas a pasta ainda está buscando parcerias com o setor público e privado para levantar recursos necessários e acelerar o processo de desenvolvimento da vacina nacional, que seria uma realidade ao final do ano, dependendo obviamente desse dinheiro.

Até o momento, o MCTI já investiu cerca de R$ 26 milhões em projetos para desenvolvimento de uma vacina brasileira contra a covid-19, conforme Morales.

— Este investimento em várias frentes, e de maneira tão articulada, foram poucos países que fizeram, mobilizando a comunidade científica, a academia, a iniciativa privada e o Estado para potencializar ações e resultados, mesmo em um cenário tão adverso como o planeta está enfrentando — avalia o secretário.

Ele admite que o aporte “precisa avançar em termos de recursos mais robustos”, mas pondera no sentido de que “o apoio privado é essencial para que o resultado aconteça e alcance escala rapidamente”, além de ter sustentabilidade:

— Como ministério, não é função nossa ter um produto comercial, mas sim criar oportunidade para que as pesquisas viabilizem um caminho produtivo. O ministro Marcos Pontes, com uma visão estratégica, aposta que as nossas pesquisas, que são excelentes, saiam do papel para a vida das pessoas por meio de novas tecnologias e produtos, assim como já acontece em outros países. Temos todas as condições e podemos reproduzir o modelo aqui.

De uma maneira geral, a posição do MCTI, inclusive no que toca à possibilidade de contingenciamentos, é que “a alternativa viável para perenidade de investimento na ciência brasileira” está nos “recursos plenos do FNDCT”:

— Esse é o lastro garantidor da pesquisa, tecnologia e inovação nacional. Precisamos inovar. Apenas por meio da inovação nossa indústria será competitiva e robusta o suficiente para garantir a autonomia do setor. Dessa maneira, é crucial que consigamos superar o hiato entre pesquisa e inovação, para que todo conhecimento gerado em nosso país se torne produtos para nossa população e ao mesmo tempo fortaleça nossa indústria. É um círculo virtuoso.

Sobre a necessidade de estruturação do país para superar as lacunas entre a pesquisa acadêmica e a produção industrial, o secretário diz que “sempre houve um planejamento estratégico do governo federal sobre a covid-19″, que o MCTI fomentou a criação de centros especializados em testes pré-clínicos e que o setor farmacêutico tem procurado o governo “para conhecer os projetos do MCTI” e se mostrado disponível para o desenvolvimento local com investimentos em uma vacina capaz inclusive de responder a mutações do vírus.

O MCTI informa também que trabalha “na frente regulatória” em apoio ao Projeto de Lei 7.082/2017, que dispõe sobre a pesquisa clínica com seres humanos:

— Ter uma lei que regulamenta a pesquisa clínica irá trazer muito mais segurança jurídica para a realização dos ensaios clínicos em nosso país.

Apesar de contar com parceiros privados em seu projeto, Célio Silva vê com ceticismo no momento uma participação mais ativa da iniciativa privada no processo industrial das vacinas em sua fase final de testes e na produção dos imunizantes. Conforme o pesquisador, “no mundo todo” é o governo que dá suporte financeiro à montagem dessas plataformas. Ele citou como exemplo os cerca de US$ 2 bilhões investidos na Moderna, responsável por uma das vacinas de RNA mensageiro em voga, que entre suas fontes recebeu 955 milhões da Barda, uma agência oficial de pesquisa avançada e desenvolvimento. O consórcio Pfizer BioNTech recebeu 375 milhões de euros do governo alemão e a parceria Oxford-AstraZeneca, 366 milhões.

— As empresas farmacêuticas privadas nacionais, bem como as multinacionais, não têm relevância na produção de vacinas no país. Ao mesmo tempo, o Brasil possui poucas empresas de base biotecnológica (tal como a norte-americana Moderna), embora tenha uma produção científica relevante na área. A questão é que a produção e comercialização de vacinas no mercado não é uma tarefa das universidades, mas de empresas que investem em pesquisa e desenvolvimento (P&D), na maior parte das vezes em parceria com universidades — analisa Fernanda De Negri, pesquisadora da Diretoria de Estudos e Políticas Setoriais de Inovação e Infraestrutura do Ipea (Diset) e coordenadora do Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS/Ipea).

Segundo a estudiosa, o investimento em P&D da indústria farmacêutica no Brasil é de cerca de 2,6% do seu faturamento. E mesmo sendo um dos setores que mais investe em P&D no país, investe muito menos do que é usual no exterior. A indústria farmacêutica mundial investe entre 10% e 15% do seu faturamento:

— Isso explica parte da baixa capacidade inovadora dessa indústria no nosso país e, consequentemente, porque o desenvolvimento de vacinas no Brasil é um processo mais demorado do que no resto do mundo. A ampliação ou construção das fábricas do Butantan e da Fiocruz é um avanço nessa direção, mas seria importante que pudéssemos contar também com fabricantes privados no país.

Quanto aos investimentos públicos federais em P&D estão “em queda livre” desde 2015, segundo Fernanda De Negri.

— É muito difícil preservar a base de conhecimento instalada no país com cortes tão profundos no orçamento destinado à pesquisa nas universidades e instituições de pesquisa — assinala.

Tomadas apenas as três principais fontes de recursos para pesquisa científica e tecnológica no Brasil, que são FNDCT, CNPq e Capes, o orçamento executado pelas três instituições, que era de R$ 13 bilhões em 2015 (valores já corrigidos pela inflação) passou para R$ 5 bilhões em 2020, uma queda de aproximadamente 61,4%.

E as ações tomadas pelo governo brasileiro para o apoio à pesquisa sobre a covid-19, foram bastante modestas em comparação com o resto do mundo. Detalhes estão em estudo do Ipea. Numa comparação com outros quatro países, o Brasil registra um investimento em P&D direcionado à pandemia equivalente a 1,8% do Orçamento federal contra 4,1% dos Estados Unidos, 10,8% do Reino Unido, 11,8% do Canadá e 6,3% da Alemanha.

Fernanda De Negri prevê que construir uma base industrial competitiva no setor farmacêutico levará tempo, a despeito do parque instalado e em instalação pela Fiocruz, atualmente responsável por 150 milhões de doses por ano, e do Butantan (60 milhões de doses anuais). Mecanismos de encomendas tecnológicas, como a que beneficiou o projeto da USP de Ribeirão Preto “podem ser interessantes nesse contexto”, segundo a pesquisadora, mas exigem que o acesso a insumos e tecnologias importadas não seja prejudicado por tarifas de importação pesadas ou mecanismos regulatórios ineficientes.

Uma das etapas mais difíceis a vencer é a instalação de laboratórios com níveis altos de biossegurança, necessários quando se trata de pesquisa e desenvolvimento com patógenos altamente infecciosos, cuidados que estariam sendo tomados na nova fábrica do Butantan, por exemplo.

Fernanda De Negri considera muito baixo o investimento anunciado pelo MCTI para as pesquisas de vacinas, especialmente quando fragmentado em vários projetos. Outra dificuldade do programa é a ausência de empresas pesquisando em parceria com as universidades:

— Geralmente, em estudos de fase 3, já existe uma empresa interessada em produzir a vacina, caso ela seja efetiva. Digamos que o estudo de uma dessas universidades seja bem-sucedido, quem será responsável por escalonar, produzir e vender a vacina no mercado brasileiro? Esse não é o papel das universidades e elas tampouco sabem como fazer isso. Não por acaso, todas as vacinas que o mundo desenvolveu até o momento foram encabeçadas por empresas, muitas delas em parcerias com universidades (AstraZeneca com Oxford, Moderna com os National Institutes of Health, Pfizer etc). Não é possível fazer inovação sem alguém para produzir em larga escala.

Fonte: Agência Senado