Produção científica sobre Covid-19 afeta o equilíbrio da geração de conhecimento

Mais de 500 mil estudos sobre a pandemia foram publicados em revistas e repositórios de preprints. Cientistas estrangeiros ressaltam a necessidade de reorientação para a ciência básica e áreas de pesquisa biomédica que foram temporariamente “abandonadas”

Em mais de dois anos de pandemia, cerca de 500 mil estudos sobre temas relacionados à Covid-19 foram publicados na forma de artigos científicos ou de suas versões preliminares, os preprints, disseminados em repositórios públicos. Segundo um levantamento divulgado em abril por Philip Shapira, do Instituto de Pesquisa em Inovação da Universidade de Manchester, no Reino Unido, esse volume formidável de informação respondeu por quase 4% da produção científica do mundo entre 2020 e abril deste ano e alterou o equilíbrio da geração de conhecimento. Disponível na plataforma bioRxiv, o trabalho analisou dados da base Dimensions e observou que, na área da virologia, a proporção de artigos acerca do Sars-CoV-2 saltou de 3,1% do total em 2019 para 37,1% neste ano – em moléstias infecciosas, o crescimento foi de 0,8% para 23,8%. A influência se estendeu também a disciplinas não vinculadas à área médica – a Covid-19 foi o assunto de 6,4% da literatura em sociologia e direito em 2021.

Uma tendência curiosa foi observada no rol dos artigos de revistas do Brasil que receberam mais citações: boa parte deles tratava de efeitos da pandemia na saúde mental. Na lista, há estudos sobre os níveis de estresse, depressão e ansiedade em meio ao isolamento social; a relação entre traços da personalidade e prevenção da doença; e os impactos na saúde mental e no desenvolvimento das crianças brasileiras. O paper de maior repercussão, com mais de 500 citações na base de dados Web of Science, foi um editorial do Brazilian Journal of Psychiatry intitulado “Pandemia de medo e Covid-19: Impacto na saúde mental e possíveis estratégias”, que analisou a literatura científica disponível até o início de 2020 a respeito do impacto de epidemias e desastres naturais na saúde mental das pessoas e enumerou, com base nessas evidências, recomendações para governos, hospitais e centros de referência, grupos de apoio e indivíduos enfrentarem o problema.

Naturalmente, apenas uma fração dos estudos fez diferença no combate à pandemia. Uma análise feita por uma equipe da Universidade Northwestern, da Escola de Administração Kellogg e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, mostrou que dois terços dos autores que publicaram sobre a Covid-19 em 2020 não tinham experiência com temas relacionados à doença. Por meio de uma ferramenta analítica capaz de medir o grau de novidade de um artigo, o grupo descobriu que, quanto mais um pesquisador se afastava de sua área habitual de especialização, menor era o impacto de seus trabalhos envolvendo o novo coronavírus.

É certo que, após o crescimento explosivo em 2020 e 2021, a proporção de novos estudos acerca da Covid-19 começou a perder fôlego neste ano. Segundo a análise de Philip Shapira, a parcela de artigos a respeito da doença ainda aumentou nos quatro primeiros meses deste ano, mas em velocidade mais lenta do que a observada em 2021. E em 70 subáreas, como farmacologia, medicina de emergência e sistema respiratório, a proporção já sofreu uma redução. “Agora que muitas das lacunas de conhecimento clínico e epidemiológico foram preenchidas, o foco da maioria dos pesquisadores está retornando para seus interesses especializados”, disse à revista Science Alimuddin Zumla, especialista em moléstias infecciosas da University College de Londres. Segundo ele, isso é uma boa notícia. “Existem muitas outras doenças prioritárias que foram negligenciadas durante a era da Covid-19 e elas precisam de atenção.” Um estudo publicado em fevereiro na PLOS ONE apontou um deslocamento do financiamento da pesquisa para o novo coronavírus e, paralelamente, uma redução do investimento em ensaios clínicos e novos tratamentos, interrompidos por força da emergência sanitária – a única exceção foram os testes clínicos de imunizantes contra o Sars-CoV-2.

Leia na íntegra: Agência Fapesp